Bolhas De Sabão (Ou : A Minha Saudável Esquizofrenia)

Havia no centro da cidade - houve durante muito tempo, nem sei quando ela deixou de haver, lembrei-me dela só hoje, ao passar pelo local onde ela não mais há - uma loja de produtos importados, a Tonsin, de artigos japoneses.
À época , a bela época da pré-pré-pré-globalização, produtos importados eram raros e, obviamente, caríssimos. Nunca comprei nada na Tonsin, que num ambiente sereno, de luz amarela mortiça, expunha sombrinhas e lanternas de papel de arroz, espadas samurais, quimonos de seda, bonecas e vasos confeccionados com o esmero de que só os orientais são capazes, jogos de tabuleiro, biombos translúcidos, bonsais, pequenas fontes ornamentais em pedra sabão, miniaturas do Ultraseven e do Ultraman, e silêncio, muito silêncio.
Discretamente encravada numa esquina do raivoso centro comercial, a Tonsin era um universo paralelo à cidade, que ainda não era, mas que já se dava ares de grande.
Era como se a Tonsin tivesse ali chegado por um grande túnel que partisse do Japão e varasse o planeta, ou que fosse a ramificação de uma gigantesca e milenar árvore japonesa, que tivesse trespassado suas raízes pelo centro da Terra, ou que houvesse vindo a bordo de uma bolha de sabão soprada por um japonesinho sorridente.
Eu, tímido que sempre fui, caminhei minha vida toda por universos paralelos e bolhas de sabão. O tímido, ao contrário do que pensa(?) o senso comum, não tem nenhum problema ou distúrbio de convivência social, a realidade é que tem; o tímido não tem nenhuma dificuldade em se relacionar com as pessoas, só não gosta muito delas, só se sente (bem) melhor quando elas não estão por perto.
Muitas vezes, em passagem pelo centro, eu entrava na Tonsin. Alguns minutos a contemplar seus balcões e prateleiras bastavam para me encapsular numa colorida bolha de sabão.
Sempre caminhei de universo paralelo em universo paralelo, de bolha de sabão em bolha de sabão.
Bolhas de sabão também eram as tardes passadas no andar superior da biblioteca Altino Arantes; as tardes nas sessões duplas de cinema, nas quais eu entrava com o sol a pino e saía já ao crepúsculo; os fins de semana recluso no meu quarto, entre gibis, enciclopédias, coleções de selos, um velho gravador de fita cassete e um laboratório de química, de onde eu só saía para comer e ir ao banheiro; as minhas andanças embriagadas pelo deserto das ruas noturnas.
Como ainda é uma bolha de sabão os quarenta minutos diários que levo em minha caminhada ao trabalho, é nela que oxigeno cérebro e músculos, que escrevo. Quem me vê caminhando, comenta com certo assombro sobre o ritmo que imprimo às minhas passadas. Pudera. Não estou andando, estou a flutuar numa bolha de sabão, num universo pessoal.
E pensar que já amaldiçoei e quis me livrar de minha timidez a todo custo. Por sorte, vejo agora, não consegui.
O que eu teria ganho se? Um punhado a mais de amigos que hoje mal me reconheceriam (e eu a eles) caso nos cruzássemos pela rua? Uma namoradinha, na escola, de cujo nome (dela e da escola) eu teria me esquecido há tempos? Uma trepada talvez uma década antes, bêbado, com grandes chances de uma paternidade precoce?
Muito pouco. Muito pouco pela minha timidez, pelas minhas bolhas de sabão. Acho até que nunca me esforcei muito nesse sentido porque sempre soube, mesmo que inconscientemente, que a realidade era moeda de troca muito fraca.
Ganhei muito mais com minha timidez. Aprendi a arquitetar universos e a povoá-los com protagonistas, antagonistas e agonizantes : todos, invariavelmente, variações de mim mesmo.
Ganhei muito mais com minha timidez. Aprendi a cultivar, podar e estaquear, em redoma controlada e climatizada, como os bonsais da loja Tonsin, a minha saudável esquizofrenia.
Ganhei muito mais com minha timidez. À moda dos artesãos sopradores de vidro, aprendi a modelar multicoloridas e multifacetadas bolhas de sabão.
Sei lá, mas acho isso muito mais bonito.

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