Pequeno Conto Noturno (26)

Bêbado (nem mais nem menos, o padrão), quatro e meia da madrugada (ou da manhã, depende se a acordar ou ainda acordado), Rubens separa e prepara os apetrechos para passar um café. E dispara para Lorena, sua amiga, na sala, no sofá, sonolenta :
- Sabia que não sai nenhum som da boca?
Rubens tanto podia ter tirado isto de um documentário da TV paga, como de uma aula da 7º série, há 30 anos, como muito bem inventado, nem ele sabia ao certo, e pouco se lhe dava; calado de natureza, quando bêbado, ele tinha que falar, qualquer coisa, hoje se saiu com esta.
- Hãããã...? - boceja Lorena à guisa de resposta.
- É verdade - segue Rubens -, não sai nenhuma palavra, música ou barulho da boca. Saem umas ondas, pequenas marolas, todas enfileiradas e organizadas com seus comprimentos, frequências e amplitudes, e ficam vagando pelo ar, sem  nome e sem letras.
- O café tá pronto? - Lorena tenta encurtar a conversa.
O café ao fim da noite já é um clássico. Há anos que eles encerram suas noites pelos bares de rock com um forte cafezão. Eram-lhes prazerosos, no início, o café e o rock, hoje são apenas clássicos; o clássico garante a conclusão de algo em suas vidas inacabadas, garante um sofá e uma quentura confortáveis, até um cafuné, às vezes.
- É o ouvido que adota o som - insiste Rubens, acendendo o fogo e lavando o coador de pano -, dá-lhe registro e paternidade, nervos, músculos, esqueleto e coração, veste-o com sotaques e roupas típicas.
- Sei... - diz Lorena -, quer dizer que se eu gritar, de agonia e solidão, e não houver um ouvido por perto, eu não gritei?
- Gritou. Mas não houve o grito. Seu ectoplasma não tomou forma, não foi fecundado, dispersou-se pelo éter feito um holandês voador.
- Então - Lorena lutando contra o sono -, um grito natimorto, não ouvido, um não-grito, é muito mais agônico e solitário, representa muito melhor o grito?
- Nunca tinha me ocorrido, mas sim, claro que sim, não é à toa que gosto de você - Rubens a medir a água na caneca e pô-la a ferver.
- Feito aquele quadro do Munch?
- Acho que sim - pondera Rubens -, acho que o maior desconforto transmitido pelo quadro vem justamente da ausência de som que emana daquela boca banguela, retorcida e estertórica. Quem olha, o vê se esgoelar em socorro, mas não há o grito para legitimar a ajuda, o grito permanece engasgado nos limites da tela, torturando suas cores, suas linhas, seu pôr do sol.
Rubens abre novo pacote de café, mede duas colheres bem cheias e as deita no fundo do coador.
- Eu sou um quadro do Munch - declara Lorena -, as pessoas passam e veem meu coração em brados de S.O.S, a palpitar em taquicardia, a quase infartar, mas o grito não lhes chega aos ouvidos, o grito permanece engasgado em meus limites, dolorindo meu tórax, minha garganta,  meus canais lacrimais.
Rubens, e ele acredita que Lorena não saiba, escuta perfeitamente os gritos do coração dela, como suspeita que ela igualmente escute os seus. A água borbulha e Rubens a verte sobre o pó do café. Perde-se, por momentos, a aspirar o vapor a subir do coador, a escutar o manso gotejar preenchendo a garrafa térmica. Nem se dá pelo silêncio prolongado de Lorena.
Com duas canecas, Rubens sai da cozinha, adentra a sala e encontra Lorena adormecida. Dormira sentada, o corpo pendido para o lado esquerdo, dobrada em "L", a cabeça a recostar no braço do sofá.
Rubens põe as canecas ao chão, tira os sapatos de Lorena, levanta suas pernas e a estende no sofá, cobre-a com um fino lençol, próprio para madrugadas menos calorentas.
Derrama o café de Lorena em sua caneca e se senta em sua sacada, resolvera ver o amanhecer. 
O céu preto-café começa a ser corroído pela luz que se avizinha, azul-petróleo, midnight blue, azul marinho, safira, azul da prússia, azul cobalto, cerúleo, azul, azul claro, e um ofuscante e ofensivo céu de brigadeiro.
O dia será mais triste do que ele havia previsto.
Rubens acaba o café e se aconchega a Lorena, no sofá. Os gritos dela estão mais calmos agora, apenas pequenos lamentos, choro de filhote de gato; os de Rubens não, nunca dormem.

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4 Comentários

  1. Uma pena, achei que rolaria sexo no final...

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  2. Uma pena porra nenhuma.Uma pena que as pessoas leiam e não consigam entender. Sexo seria o que de pior poderia acontecer entre os dois, acabaria a confiança entre eles, a amizade.
    Ainda que, inicial e ilusoriamente, o sexo fizesse parecer que a amizade atingiu um patamar superior, depois de algum tempo, ele revelaria o quão rés do chão são as relações carnais. E Rubens sabe disso.

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  3. HUAHAUHAU

    Isso é algo bastante relativo! Se ela for feia, mas bona gente, concordo plenamente! Mas se for linda e gostosa, valeria a tentativa de atingir um patamar superior ou um relacionamento mais sério. Até porque ela parece ser razoavelmente inteligente, coisa rara hoje em dia. O que Rubens acha disso?? haha

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