De Bolinhos De Chuva E Estricnina (Ou : O Dia Em Que Dona Benta Encontra Lucrécia Bórgia)

Volta e meia, formigas desfilam em sinuosas filas indianas pela casa, pelos azulejos, pelo teto, pelo assoalho, daquelas bem miudinhas, quase invisíveis a olhos míopes ou acima dos 40 anos.
Sou péssimo em lidar com pequenos transtornos domésticos, torneiras pingando, resistência queimada de chuveiro, tomadas que não funcionam, cordas de varais que arrebentam, montar, desmontar, parafusar ou desparafusar qualquer coisa.
Mas de matar formigas, eu gosto. Tenho sempre um veneno granulado de reserva, o qual disponho em obstáculos cor-de-rosa ao longo da rota delas, cuidadosa e estrategicamente. Elas passam e vão erodindo as pequenas montanhas, vão levando os grãos para o formigueiro.
Não sei que porra de reação acontece lá dentro, só sei que no dia seguinte, dois dias depois no máximo, formigas mortas forram o chão à entrada do formigueiro, geralmente ao rodapé ou ao pé dos batentes.
Tenho posto o tal veneno há alguns dias, e nada de formigas mortas, elas continuam carregando o granulado para o formigueiro, prosseguem com suas procissões noturnas pelo assoalho entre a cozinha e a sala.
Concluí, pretenso darwiniano que sou, que essas superformigas são as descendentes das primeiras formigas resistentes expostas ao veneno, crias da seleção pelo uso do mesmo veneno durante gerações e mais gerações delas, e blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá.
Contudo, pretenso Houseano que também sou, depois de tomar umas e outras, deu-me um estalo, um lampejo, uma centelha de recusa ao acadêmico e a busca da resposta num patamar mais prosaico e mundano. Ocorreu-me olhar a data de validade do veneno : expirada há três meses.
Quando os alimentos - nossas fontes de matéria-prima, nutrientes e energia, em suma, da manutenção da vida - ultrapassam seus prazos de validade, eles estragam, passam a ser pasto de bactérias e fungos que os decompõem, que secretam toxinas sobre eles, algumas bem perigosas, até mesmo letais.
É curioso que o veneno se torne inofensivo uma vez vencido seu prazo de validade. Veneno "estragado" não deveria ser ainda mais mortal? Veneno "podre" deveria exterminar em dobro. Mas não, fica inócuo.
De onde se vê que cada coisa não tem apenas a sua serventia, também se vê que cada coisa só bem consegue desempenhar seu talento por um ínterim, só consegue ser boa no que é boa, no que nasceu talhada para, durante breve hiato de tempo. Devemos reconhecer esse intervalo funcional das coisas, e recorrer aos seus favores apenas nesse intermédio. 
Findas as funcionalidades, Dona Benta põe estricnina na sopa, e Lucrécia Bórgia faz bolinhos de chuva para os netos e as visitas.
Ignorar a disponibilidade das coisas, julgá-las perenes e sempre acessíveis, desrespeitar seus tempos, é correr sérios riscos. Ou de se envenenar, ou de não envenenar o inimigo.
Deixemos que se aposentem, os alimentos e os venenos vencidos, que tenham o merecido descanso, que decomponham em paz.
As relações e os sentimentos humanos não são diferentes.
O superestimado amor - que os idiotas dos poetas chamam de a ambrosia da alma, a cornucópia da existência, a força que move cordilheiras - realmente nutre o sujeito durante um certo tempo, o faz se sentir poderoso, faz o pau bater no umbigo, duas, três, quatro vezes por dia, mas também tem seu prazo de validade.
Logo vai perder a cor, o aroma, o frescor, a consistência, a substancialidade, a graça; logo vira um jogo de concessões, de ajustes, de pequenas rivalidades, desaguando, muitas vezes, nos ressentimento e rancor mútuos. Continuar se servindo dele, é correr o risco de se envenenar.
O mesmo vale para as amizades mais estreitas e profundas; uma vez fragmentadas, guardarão em si, para todo o sempre, a salmonela e o botulismo. Não se sirvam de amores e amizades apodrecidas. Antes, tornem-se faquires emocionais.
O ódio - o veneno do espirito, pelas mesmas bocas idiotas e poéticas -, em contracorrente, costuma arrefecer com o tempo. É comum velhos inimigos, que não se mataram no auge de sua rixa, estabelecerem frias relações de civilidade com o passar do tempo, tornarem-se quase cordiais.
Sem força física para manterem as posturas hostis, ou com a memória fraca demais para se lembrarem do motivo de sua rivalidade, alguns chegam a se tornar companheiros de copo, parceiros de baralho nas praças, e a frequentar os mesmos grupos de ginástica para a terceira idade - neste último caso, a morte teria lhes sido mais piedosa e digna. Creditam a antiga querela à imaturidade, e seguem viúvos de juventude, inócuos, venenos que não matam.
Também têm o direito à aposentadoria por invalidez, o amor e o ódio; forçá-los além de seus tempos, é correr o risco de nos envenenar, ou de deixar vivo nosso inimigo.
Deixemos que se recolham em seus pijamas e chinelões, o amor e o ódio, que tenham o merecido descanso, que decomponham em paz.
E sigamos, sem eles, sem mais o quê, sem vistas ao nosso descanso, lutando contra as formigas; cada vez menores, as formigas, cada vez mais felizes seguindo a procissão, a fazer pouco caso dos últimos gigantes que ainda caminham sobre a Terra, a passos trôpegos, como os de quem foi envenenado.
E você, meu amigo, já pode chorar.

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