Pequeno Conto Noturno (9)

Virna conclui o gole, repõe a rolha na garrafa de vinho, levanta-a pelo gargalo usando o polegar e o indicador e a olha contra a minguante luz da Lua, lamenta que seu conteúdo já esteja à metade e a coloca no degrau da escadaria imediatamente abaixo ao que está sentada com Rubens, entre os pés dos dois, escadaria de cimento áspero, de uma praça suja, de vegetação seca e malcuidada.
- Eu te amo - Virna diz.
- Ainda?
- Sempre.
- É porque nunca chegamos aos finalmentes, é porque não tem acesso completo a mim.
- Mas eu poderia ter acesso fácil a você, Rubens.
- Ah, é?
- É. Se eu destruísse a sua vida, só te restaria correr pra mim. E eu sei de você o suficiente para isso.
- Não é bem assim.
- Não?
- Não. Você sabe de mim coisas que a maioria das pessoas consideraria o suficiente para pôr uma vida abaixo, não é a mesma coisa.
- E não dá no mesmo?
- Dá. Mas você não faz.
- Porque eu te amo.
- Não acho.
- Não acha que eu te amo?
- Não acho que seja por isso que não destrói minha vida.
- E o que me impede, então?
- Porque sabe que nós até iríamos pra cama, inicialmente. Uma, duas, meia dúzia de vezes, pela vontade acumulada, pela curiosidade, até. Só que depois, sabe muito bem, eu sumiria de seu mapa, não continuaria a me dar com quem me demoliu.
- É mesmo o que pensa?, Virna pergunta.
- Não. Só é uma segunda hipótese. Uma terceira é que você não me detona por ser uma pessoa verdadeiramente boa, altruísta, paciente, abnegada.
- Não acredita em pessoas boas de verdade, acredita?
Rubens desarrolha a garrafa, emborca e a passa para Virna, que também se serve e mais uma vez olha o conteúdo decrescente do vinho.
As costas das mãos - a direita de Rubens e a esquerda de Virna - se tocam, seus dedos mínimos e anulares brincam, entremeiam-se, desenroscam-se, dançam um descoordenado e doce tango.
- Uma garrafa só? Geralmente traz duas.
- Prudência. Duas e começaria a se tornar arriscado - diz Rubens.
- Você falando em prudência? Escrúpulos depois de velho, Rubens?
- Ou isso ou a taxa mais baixa de testosterona.
- Não entendi.
- Não existe essa coisa de amadurecimento, de adquirir consciência para os homens, tudo o que há é a taxa de testosterona, não ficamos maduros com o seu declínio, e sim medrosos.
- Sei não. Conheço homens que amadureceram.
- Aos 20 anos, por exemplo?
- Não.
- Pois é. Acredite, não é a idade, é a baixa na testosterona que dá um mínimo de decência aos homens.
- E a sua testosterona, como anda? - cutuca Virna.
- O suficiente para sua função básica. E só.
Os dois riem. Virna pende a cabeça para a esquerda, até encontrar o amparo do ombro de Rubens, e ali se deixa.
Ela está imensamente feliz de poderem estar ali, levemente triste por saber que nunca passarão daquilo.
- A noite silenciou, Rubens, acho que acabou de vez aquele foguetório todo da virada do ano e as pessoas foram dormir, entupidas da ceia. Vai conseguir dormir, agora?
- Sabe que não é nada disso que impede meu sono, não sabe?
- Sei.
Virna emborca, acaba com a garrafa e volta a recostar a cabeça no ombro de Rubens.
- Já se vão três horas e quarenta e dois minutos do Ano Novo.
- Você acredita mesmo, Virna?
- No quê?
- Em Ano Novo.
- Você não, né?

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