Revoadas

Pus-me de pé, hoje, sobremaneira antissocial.
De antemão exasperado pelos rostos, pelas vozes, pelos cheiros, pela geleia nojenta de gente que tenho que aturar a garantir meus parcos vencimentos, meu quinhão de sal - os soldados romanos tinham seus soldos pagos em sal, daí o termo salário.
Talvez fosse tão-somente os últimos fiapos de um sono abortado ainda enroscados no áspero da cerveja da noite passada, talvez esse clima de névoa seca, talvez influência do beligerante planeta Marte que, hoje, dizem - recebi 4 e-mails, por volta da meia-noite, fulgurará no céu feito em uma segunda, cheia e sangrenta lua.
O mais certo, porém, é que seja a falta de revoadas.
Quer coisa mais bonita e renovadora de ânimo que uma bela e revoltosa revoada?
Estou precisado de uma boa revoada.
E pode ser revoada de qualquer coisa :
de maritacas, de latas de cerveja, de amigos que você mais via há 10 anos atrás (os amigos da "Lista" do Oswaldo), de falenas de asas de pó de giz, de falenas de meia arrastão e minissaia, de músicas do Chico, de gavetas abertas, de abraços que nunca foram dados, de cartas amareladas, de bucetinhas que você tanto quis e não comeu, de bucetinhas que você nem queria tanto e acabou comendo, de piadinhas infames, de anjos com enormes tetas, de arroubos insones, de petálas de ipê-amarelo, roxo, branco e rosa, de matinês de cinema, de navalhas à cata de uma jugular, de gatos a acasalar nos telhados cheios de lodo, de livros do Monteiro Lobato, de morcegos (dos bonzinhos) com a boca melada de sumo de jambo, de nuvens com a forma dos sonhos, de sacis de carona em redemoinhos, de baleias e golfinhos encalhados por ousarem seguir diferente rota, de cafunés, de lembranças a escorrerem salgadas dos olhos.
Estou a ouvir dizer de uma intensa revoada de um novo vírus de uma nova gripe.
Contudo, essa tal não aplaca minha necessidade de revoadas, uma vez que invisível a não-nanoscópicas retinas.
A noite não me traz mais revoadas há muito.
Só sei que, hoje, vou assistir a um episódio repetido de House, em seguida, subir ao telhado do prédio por um tipo de alçapão invertido que dá para um bat-sótão, e daí para a cobertura.
Estará em minha companhia, uma garrafa de um bom e seco vinho tinto.
Sentarei-me à beira do telhado e lá ficarei, a sorver pelo gargalo o vinho e o bordô do céu, em aguardo do plenilúnio de Marte.
À espera de Marte pleno nos Ares.
E, com sorte, quem sabe, de uma revoada de granizos mornos.

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