O Lutador

O escuro da tela se desfaz sobre um mural de recortes de jornal.
A câmera segue uma única trajetória por sobre as notícias dos desenlaces dos combates, trajetória única com dois sentidos: crescente cronologicamente, 1987 a 1989, e descendente na extensão física do mural bem como no aspecto dos êxitos do lutador, do auge ao nocaute, e salta 20 anos, do mural para um vestiário e cai sobre as costas velhas e reumáticas de Randy "The Ram", o das fotos dos recortes dos jornais.
Lutador de luta livre, vertente de combate que teve sua expressão maior aqui no Brasil através do programa Telecatch, décadas de 60 e 70, nas Tvs Excelsior e Record, nas figuras de Ted Boy Marino, Verdugo, Fantomas e outros.
Eram aquelas lutas de "marmelada", coreografadas, resultados combinados nos vestiários. Os resultados eram combinados, os golpes ensaiados, porém os machucados, as torções, as contusões aconteciam de fato, eram verdadeiras. Não havia a verdade. Nem por isso não havia o desgaste.
Randy "The Ram" (Mickey Rourke) é um desses lutadores, um homem que viveu de encenar, foi um campeão de mentira há vinte anos, um arremedo da própria mentira no tempo atual.
Entope-se de analgésicos para encenar a si próprio um corpo ainda vigoroso, acreditar talvez que ainda suporte mais uns vinte anos. Vive mais de dar autógrafos e tirar fotos com fãs em convenções que de lutas propriamente, mas ainda se arrisca nos ringues, contando com o respeito e condescendência dos lutadores jovens.
Sobrevém um infarto após uma luta, dizendo ao homem que viveu de encenar que o espetáculo havia terminado, não haveria mais encenações, só mundo real. Volte a lutar e morra, foi o diagnóstico do médico.
The Ram mantém um único relacionamento próximo do que pode ser classificado como afetivo, com Cassidy (Marisa Tomei, em perfeitíssima forma), uma stripper. Uma stripper também é pura encenação, uma stripper, nos moldes daqueles bares americanos, dança sem ser uma bailarina e é uma puta que não transa com os clientes, oferece uma dança que não é dança e sugere um sexo que não vai acontecer, as passarelas acima dos balcões por onde desfilam e os postes por onde se esfregam são os seus ringues, seus combates encenados. Esse relacionamento é restrito aos limites do clube da stripper; não existem The Ram e Cassidy no mundo real.
The Ram – Robin, no mundo real, tenta: carregador de caixas em um depósito, atendente de balcão em uma delicatessen, podia até ter tentando ser professor.
Faz uma triste e melancólica tentativa de reaproximação da filha, não funciona, ele é inepto para o mundo real, a filha o rejeita. Procura Cassidy – Pamela fora do clube – em outra tentativa de um vínculo real, também é rejeitado.
Até que um cliente da delicatessen o reconhece no balcão, reconhece “The Ram” por detrás do avental, da touca para os cabelos, do crachá escrito Robin. O reconhecimento foi pior que o não-reconhecimento. Ser reconhecido e não ser mais o objeto do reconhecimento, ser uma caricatura da caricatura, um campeão de mentira fatiando frios num mercado qualquer. Ele soca a máquina fatiadora, corta a mão e sai espalhando seu sangue pelo mercado. Se era sangue que a realidade queria dele, acabava de conseguir. Pela última vez.
The Ram vai viver mais uma vez, nem que seja a derradeira, mas que seja como The Ram. Faz ligações, remarca lutas.
Puta arrependida, Pam/Cassidy, vai até The Ram, tentar impedi-lo. Mas já é tarde, não há mais Robin, nunca houve, só há Randy The Ram. Ela o segue até o local da luta e até o último momento, segundos antes da entrada dele pelo corredor que o levaria ao ringue, ela tenta.
Ele entra. E volta a viver. Luzes, cartazes com seu nome, gritos do público. E o principal: um puta sorriso na cara dele, ali ele existia. A morte perto disso é muito pouco, não assusta.
A luta começa, programada para ele ganhar, socos, pontapés, acrobacias, cadeiras se quebrando em cabeças. O adversário está “subjugado”, mas falta o gran finale, falta o golpe para finalizar a luta, o golpe que sempre foi sua marca registrada, ficar em pé num dos cantos do ringue, se lançar ao ar e cair com o cotovelo no peito do inimigo, o golpe “The Ram esmaga”.
Começa a sentir dores no peito, no entanto. Subir ao canto do ringue e se lançar poderá ser fatal, o público o impulsiona, alheio a sua dor, à sua impotência. Ele sobe. E antes de se lançar, olha uma última vez para o alto das arquibancadas, para a pequena porta por onde desceu ao ringue, ver se Pam/Cassidy estava lá, olhando, esperando por ele. Ela não estava.
Ele se lança ao ar.
E a tela volta a ficar escura.
The End.
Morreu? Nunca ficaremos sabendo.
E pouco importa.
Importa que o cara executou o seu “The Ram esmaga”
Importa que ele deu seu salto no vácuo com joelhada.
Um brinde de vodka-tônica aos que ainda saltam.

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3 Comentários

  1. As strippers transam com os clientes, mas em off e locais apropriados. Quase sempre há cabines. Coisa suja mesmo.
    Lembro do "super catch é na Manchete", foi a fase q peguei.
    Morreu, não morreu? Tanto faz. Encerramos o filme com sensação de tempo bem aproveitado.
    Abç

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    Respostas
    1. Quem morreu? The Ram? Ficou em aberto, mas tudo indica que sim. Ou Rourke? Esse tá vivo, com uns 70 anos. É até uns tempos atrás tava nocauteado caras 30 anos mais novos que ele.
      https://amarretadoazarao.blogspot.com/2014/12/mickey-balboa-rourke.html?m=1

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    2. O the RAM. É como vc disse no post: morreu? Para nós, não importa mesmo. O MR tá com a cara torta. Mas cheio de saúde.

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