Um Dia na Vida (15)

Dizem que quem muito fala, bom-dia dá a cavalo. Não sou de falar muito (a não ser comigo mesmo), ainda assim dou bom-dia não só a cavalo, igualmente a gato, cachorro, bem-te-vi, quaresmeira.
Também aos mais variados subtipos da fauna humana, como os vagabundos de praça. Por alguma razão, esses autóctones dos bancos de cimento vivem a me dirigir a fala. Talvez por eu ser um dos poucos transeuntes a tal da hora da manhã, talvez por ser um dos poucos a não desviar meu caminho para os evitar - são inofensivos, no mais das vezes. Talvez até por se reconhecerem em minha barba desgrenhada, em minha "barba de mendigo", como disse um colega de escola do meu filho, querendo espezinhá-lo. Como antídoto antibullying, recomendei que, numa provável repetição da provocação, ele simplesmente dissesse : - você diz isso da barba do meu pai porque ainda não viu os pelos do saco dele. Dito e feito. Nunca mais o moleque veio enchouriçá-lo. Temos que ensinar nossas crias a se defenderem com elegância e galhardia.
Mas voltando à vaca fria, houve uma ocasião, inclusive, em que, ao atravessar uma avenida por sob seu viaduto, um dos condôminos do elevado me saudou com seu sorriso desfalcado e disse : - barbão bonito, hein? Em resposta, cofiei a barba e agradeci-o, é claro.
Hoje, ao cruzar a fresca e arborizada praça Allan Kardec, por volta das 06h30, passei ao lado de um banco onde dormia lá um vagabundo. De alguma forma, minha passagem deve tê-lo despertado, pois alguns passos meus depois, ele me chamou - a cara mais inchada de pinga que de sono -, deu-me bom-dia e falou : - ô amigo, eu tô acordando agora e tô meio perdido, o "vento" tá praquele lado?
Que porra de pergunta era aquela? Porém, vinda de quem, relevei a aparente incoerência e respondi que nem estava ventando. Eu entendera errado, no entanto. Não era o vento, corrigiu-me o vagabundo, era o centro (da cidade).
- O Centro é praquele lado? - repetiu a pergunta, apontando o dedo indicador na direção oposta à da perguntada. Respondi que sim, que o centro ficava naquela direção erroneamente apontada por ele.
Sacanagem com o vagabundo? De forma alguma. 
Primeiro que o que de tão urgente ele teria a fazer no centro e que já não estivesse a fazer ali ou onde quer que chegasse seguindo na direção contrária, ou seja, nada?
Depois, muito longe de sabotá-lo, fiz-lhe um favor - hoje, acordei benevolente. Um sujeito que acorda num banco de praça e nem sabe onde se encontra, não está, como ele mesmo disse, perdido : esse sujeito está é livre!
Perder a noção do espaço e do tempo convencionados é uma das expressões mais puras e genuínas de liberdade que eu posso conceber.
Ao concordar com a direção errada que ele apontara, não contribuí ainda mais com sua desorientação, sim para a manutenção de sua liberdade.
E segui meu caminho. Para as minhas aulas diárias. Aulas que ninguém mais quer. Aulas que nem são mais aulas.
Segui. Mais perdido do que o que o vagabundo julga estar. Perdido, mas com uma rota imutável. O que, de certo modo, é muito pior.

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7 Comentários

  1. Reflexivo pra caramba, Marreta.
    É isso.

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  2. Belíssimo texto! Gostei particularmente da resposta propositalmente errada à pergunta de quem está mentalmente perdido. Vivi alguns momentos assim com minha avó e minha mãe, ambas vítimas de alzheimer. Concordar, não contradizer quem está mentalmente sem rumo é sinal de respeito pelo semelhante. E que estátua linda! Deve ter um nome, mas, se não tiver, sugiro "Miséria".

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    1. Essa estátua se chama Jesus Sem-Teto.
      https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/galeria_de_imagens/2018/11/657585-estatua-jesus-sem-teto-e-inaugurada-no-jardim-da-catedral-metropolitana-do-rio.html

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  3. Me gusto mucho el relato. Te conmueve y hace pensar, Te mando un beso. https://enamoradadelasletras.blogspot.com/

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