Um Dia na Vida (12)

Tenho Certidão de Nascimento. Um nome, o nome dos meus genitores, o dia e a hora do meu vir a furo para o mundo, o meu tamanho e peso na ocasião lavrados em cartório de gavetas mortas. Não tive opção de não tê-lo. Não pude decidir se eu queria ou não ter um nome.
Tenho batistério. Um documento afirmando que sou católico apostólico romano e temente a Deus. Não pude opinar se eu queria ou não ser batizado, apresentado a Deus. Conta minha mãe que eu chorei de me esgoelar durante todo o ritual. O possível protesto de quem não tinha palavras.
Tenho R.G., a carteira de identidade. Também não pude escolher se desejava ou não tê-lo. Também não fui perguntado se queria ou não "tocar piano" e deixar meu registro dactiloscópico na Secretaria de Segurança Pública. De uma idade em diante, você não é quem você diz, é uma foto 3 x 4 feia pra caralho.
Tenho CPF. Também não pude escolher me ocultar da Receita Federal.
Tenho Certificado de Reservista. Não foi me dada a escolha de, ao completar 18 anos, me apresentar ou não ao serviço militar mais próximo, ninguém me perguntou se eu queria ou não mostrar a rola pro médico do quartel.
Tenho Título de Eleitor. Também não fui consultado se queria ou não tirar o meu passaporte para a democracia. Inclusive, ninguém quis nem saber se me interessava ou não participar dessa democracia. A maior liberdade concedida é eu ser obrigado a ir votar e, na hora, dizer que não voto em ninguém. Expressão de liberdade que será mandada à merda. Uma vez que meu voto será declarado inválido e desconsiderado no cômputo geral.
Não tenho CNH. Não tenho a carteira que me habilita a conduzir veículos automotores. Não sei dirigir. Pude optar em não passar grande parte da minha vida preso em um útero metálico. Não deslizo sobre rodas. Troto sobre pés. Ando. Caminho pra todos os lugares e para tudo quanto é lado. 
Não fico com os olhos fixos no semáforo, no velocímetro, no medidor de combustível, nos radares. Vejo tudo o que as tênias dos automóveis não veem. Vejo as tilápias obesas a nadar no ribeirão raso e sujo. Vejo as lavadeiras-mascaradas, as garças-brancas, os corós-corós. Com sorte, até um arisco martim-pescador. Vejo a cicuta de Sócrates e o papiro do Egito vicejando nas suas margens cimentadas. A cicuta é prima-irmã do agrião. É a ovelha negra da família, ou, a depender do ponto de vista, o agrião que o é. Uma boa saladinha de cicuta a passar-se por agrião é uma boa pedida para se dar a um vegano chato e afrescalhado.
A caminho do trabalho há duas praças. Posso contorná-las pela rua ou atravessá-las, caminhar através delas. Gosto de caminhar através delas. Pela manhã, lá pelas seis da matina, elas mantêm ainda a temperatura da madrugada, a umidade, o silêncio, o verde sem fuligem.
Nesta época do ano, porém, estação de ar desidratado e solo sequioso, as praças se tornam terras devastadas, cenários de extinção; seus caminhos, tapetes de poeira e de folhas esfarelentas. Ruínas. Caminhar através delas, assim, é como caminhar por dentro de mim.
Abro a lata. Tomo o meu primeiro gole do dia. Contorno a praça pela rua.

Postar um comentário

1 Comentários

  1. "Não deslizo sobre rodas"
    Sorte a sua. Carro é um mal necessário para mim!
    Belo texto!
    Abraços

    ResponderExcluir