Um Dia na Vida (10)

Ontem, bebi bem. Bem e bastante. A noite estava favorável. O estômago, também. Beber é uma questão de estômago. Poderia ter bebido mais. Nem eu nem a madrugada apresentávamos sinais de embriaguez ou de exaustão. Há tempos que não éramos umas crianças sem dores nas costas e nas articulações. Poderia ter bebido mais.
Achei, sem querer, um CD antigo há tempos desaparecido. Cento e noventa e três músicas, das mais variadas. De A a Z. De Adoniran Barbosa a Zeca Baleiro; de Altemar Dutra a Zeca Pagodinho; de Ataulfo Alves a Zizi Possi; de Amado Batista a Zélia Duncan; de Alcione a Zé Ramalho. Todas baixadas pelo e-mule; na internet pré banda larga.
Velhas canções são como Engov, boldo e outros colagogos. Forram-nos o estômago com kevlar. Pedem por mais bebida, por mais estrelas, por mais OVNIs, por mais meteoros, por mais gatos no cio, por mais sacis-pererês.
Podia ter bebido mais. Mas algum tipo de prudência, algum cri-cri-cri de um Grilo Falante, convenceu-me a deixar para depois o que eu poderia beber hoje.
07h12. Acordei sem ressaca. Quatro horas e 22 minutos de sono ininterrupto. Um recorde para os últimos anos. Eu dormi. Mas a boa chuva, não. Começara por volta das 20h do sábado, varou a madrugada e não dava sinais, pela manhã, de que fosse tão cedo embora. Chuva mansa, boa e prazenteira. Um cafuné no asfalto ressequido. Na cidade que não faz por merecê-lo.
08h43. A casa ainda a dormir, eu, a empunhar meu guarda-chuva, saí à rua. Comprar cerveja na loja de conveniência (R$ 2,09 o latão de Lokal) e limão, batata, tomate, pimentões e cebola no varejão; a esposa programara uma tilápia ao forno para o almoço.
Gosto de andar. Mais ainda sob a chuva. O ar limpo. As ruas limpas. As calçadas limpas. As frutas nos pés de acerola, pitanga, amora e goiaba, plantados nas calçadas, limpas. A fealdade da grande cidade bem que tenta, mas não consegue abafar esses pequenos sorrisos sumosos e ricos em vitamina C. Nem impetrar ação de despejo contra os sanhaços, os tejos, os gaturamos, os tuins.
Como de três a quatro acerolas; um pouco mais de pitangas; e, enfim, dois sóis amarelos e perfumados de um jambeiro, que teimavam em não amadurecer.
Comprei a cerveja; depois os acompanhamentos para a tilápia da esposa. À saída do hortifrúti, ainda chovia. Infiltrações nas paredes dos prédios, roupas a mofar nos varais, o Morro do Bosque em uma esmeraldina festa de musgos e de líquenes. Uma pantufa de neblina a me envolver. O oxigênio a nadar de snorkel no oceano de vapor d'água suspenso na atmosfera. Não abri o guarda-chuva. Rendi-me à golden shower da Mãe Natureza.
Na rua em declive, em cada um de seus lados, em cada uma das margens de seus meios-fios, a enxurrada criara regatos plácidos e de águas límpidas. Descalcei-me e me pus a andar por eles. Gravetos, folhas, papéis, por vezes, enroscavam-se nos meus pés, por entre os meus dedos. Fechei os olhos. Imaginei serem lambaris-de-rabo-vermelho.
Cupins alados, as chamadas "aleluias", seguiam-me e me escoltavam. Pequenas e encantadas morganas a dançar para mim o seu balé de acasalamento e de morte. 
Iria ser um bom domingo.

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2 Comentários

  1. Em franca também choveu pra caralho no domingo. Interessante é ver que as cervejas em ribeirão são sempre mais baratas aí.

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    1. Em compensação, hoje já está um sol e um calor da porra!!!
      Acho que os preços das cervejas em Franca e Ribeirão devam se equivaler. É que, especificamente, essa loja de conveniência em que costumo me abastecer faz umas boas promoções de vez em quando. Quando a cerveja está a uns 10 dias, a uma semana de vencer, ela dá uma boa reduzida no preço.

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