Ossos do Ofício

A famosa e famigerada região da cidade conhecida por Baixada abarca a avenida Jerônimo Gonçalves - de margens dantes guarnecidas por palmeiras imperiais -, as, que lhe são paralelas e acima, ruas José Bonifácio, Saldanha Marinho, Amador Bueno e Álvares Cabral e as, que a estas cruzam perpendicularmente, ruas Visconde do Rio Branco, Mariana Junqueira, Duque de Caxias, São Sebastião e Américo Brasiliense.
Nos auriverdes tempos do Ciclo do Café, a Baixada não era a Baixada, era o centro comercial, financeiro e cultural da recém-nascida em berço esplêndido e emergente cidade, hoje, desgraçadamente, elevada à categoria de região metropolitana.
Hotéis de luxo, cafeterias, confeitarias, alfaiates, modistas, chapeleiros, teatros, tabacarias e até um cassino compunham a topografia humana do local.
Um século depois (a cidade conta com 161 anos), não obstante a ululante decadência da região outrora nobre, o seu literal rebaixamento à Baixada, o seu estado de miséria orgânica, a múltipla falência de seus órgãos, pode-se dizer tudo da Baixada, menos que esteja às portas da morte, menos que esteja em estágio terminal, ou vegetativo.
Se não a única, a Baixada é um dos poucos setores da cidade que nunca dorme, que se mantém em vígilia durante as 24 horas do dia, pelos 365 dias do ano, ou pelos 366, que a Baixada não perdoa nem ano bissexto.
Duas distintas dimensões temporais ocupam sua circunscrição em cacos e ruínas, duas dimensões paralelas se alternam em suas carcaça e carniça corroídas e carcomidas pelos vermes do tempo. Uma durante o dia e a outra a partir do cair da noite, feito grupos de funcionários que trocam de turno em uma fábrica que nunca descansa suas fornalhas e chaminés.
Durante o dia, a Baixada abriga uma caótica zona de estabelecimentos comerciais, destaque dado às inúmeras lojas de bicicletas, motocicletas e de componentes eletrônicos, fora o atropelo insano dos vendedores ambulantes, que se alastram pelas calçadas e ruas feito tiririca, um simulacro da rua 25 março, uma pequena Chinatown, uma desgraça.
Caído o sol, uma outra zona assume o seu turno na Baixada, uma zona muito mais organizada que a diurna, muito mais séria : a ZBM, a famosa zona do baixo meretrício. Germinada a noite, é puta pra tudo quanto é lado e pra todos os gostos (ou desgostos, decepções) na Baixada. Um festival de horrores. Uma profusão de peitos obesos e gelatinosos, de coxas paquidérmicas e celulíticas, de barrigas que escapam e escorrem por debaixo das roupas apertadas e se acomodam e se dispõem em duas, três, quatro camadas de banha, de bocas com muito carmim e pouco dentes, de gigôlos, cafetões e cafetinas, de hotéis baratos e seus quartos de alta rotatividade, de bares pés-sujos, de viciados.
Não raro, na troca dos turnos, as duas dimensões se interceptam momentaneamente, tangenciam-se de leve. Não raro, um funcionário, por exemplo, de uma loja de componentes eletrônicos faz um serão e se demora para tomar uma cervejinha, degustar um ovo colorido, ou um salsichão em conserva, bater uma sinuca e comer uma puta. Não raro, uma puta, antes de se recolher ao seu merecidíssimo sono reparador e cicatrizante, dá uma passada em alguma loja para comprar algo de que necessite.
A conversa que peguei, de canto de orelha, ontem, quando passei pela Baixada a caminho do banco, por volta das oito, oito e meia da manhã, se deu justamente nessa hora da troca de turnos, quando os limites entre as duas dimensões ainda são indistintos e difusos.
A puta, IMC 42 e manequim incálculavel, de pé, com um toco de cigarro aceso na mão direita e uma latinha de Skol na esquerda, tatuagem de naja no entrepeitos, encostada na parede do Hotel Apolo (ambiente familiar, agora com café da manhã e wi-fi), queixava-se da vida ao rapaz que acabara de subir a porta de aço corrugado da General Bike.

- Vô te contá, bixim... tô parecendo um imã, todos caras que sobem comigo pro quarto, têm me pagado com nota de 100 reaus.
- Então, a coisa tá boa pra você - responde o rapaz a perfilar as bicicletas na porta da loja.
- Bom uma porra! Vê lá se eu tenho a obrigação de sair depois procurando troco!

Pããããta que o pariu!!! O cara toma uma cerveja, forra o estômago com uns tira-gostos, faz barba, cabelo e bigode com a puta, paga o quarto do Hotel Apolo, limpa o pau na cortina e ainda sai com troco pra 100? Anda baixíssima, a cotação da buça na Bolsa da Baixada. E a das pregas no pregão eletrônico? Deve tá um desrespeito.
É, caro leitor do Marreta, a vida não tá fácil pra ninguém. Nem para as mulheres de vida fácil. Ter que levantar toda suada, melada, esfolada, vestir as calçolas, ajeitar as tetas no sutiã, equilibrar-se ainda de pernas bambas no salto alto e sair pelos corredores do Hotel Apolo a catar troco.
Passado o acesso de riso, penalizei-me da puta. Tanto que logo me ocorreu uma maneira de ajudar a essas meninas. O dono do Hotel Apolo, o gerente do zonão, poderia adotar um sistema de apoio parecido ao do supermercado aqui perto de casa. No mercado, quando os operadores de caixa precisam de troco, ou de bobina nova para a máquina, ou de ir ao banheiro, eles acendem uma luz instalada num poste lateral e acima do caixa. Imediatamente, vem outro funcionário e traz o troco, a bobina etc. Bastaria a puta acender uma luz (vermelha, óbvio) colocada no alto da porta e uma outra puta viria lhe trazer o troco, mais camisinhas, ou o que fosse necessário.
Acho até que se voltar a ver a tal puta, sugerirei a ela o prático sistema. O problema será se ela quiser me agradecer efusivamente pela melhora da logística de seu trabalho. Aí, quem ficará sem moeda de troca, serei eu.

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13 Comentários

  1. Interessante, mas já existe uma alternativa conhecida pelos motéis que é registrar a firma sob um nome de padaria... Dureza é que com o tempo os frequentadores assíduos já manjam de todos os lugares conhecidos. Por aqui até os mendigos aceitam débito, aliás por aqui não, em todo lugar inclusive as igrejas. Claro que pagar puteiro com cartão de crédito sempre foi coisa de cabaço, mas agora não, agora têm cartões sem fatura e até puta com microempresa individual. Imagina que maravilha deve ser ter crédito na casa? Acumular pontos e trocar por um boquete grátis. Ruim que não deve rolar cartão fidelidade.
    "J"

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    1. É o famoso serviço sem nota, como diz Paulinho Gogó!

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    2. Sem troca nem troco, como na situação da sua amiga. Se bem que sempre vai haver aquela estratégia do "posso te dar o troco em balinhas?" Imagina isso na zona, agora, só i-ma-gi-na. Melhor levar trocado do que levar literalmente o troco.
      "J"

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  2. Super legal este texto! Você é um grande cronista, cheio de piadinhas que nos fazem sorrir mais de uma vez durante a leitura. Aqui em BH já existiu uma região assim, lotada de casas de prostituição espalhadas por várias ruas. Havia até a "periferia da periferia", localizada na rua Paquequer, onde ficavam as putas mais velhas e fim de linha. Uma loucura. Mas não poderia deixar de pensar em (mais) um jogo JB de palavras: dadas as condições e frequência da Baixada, em vez de "Ossos do ofício" o título poderia ser "Destroços do ofício". Fui.

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    1. E, todas elas, tomando suas cervejas em copos Nadir Figueiredo.

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  3. É amigo Azarão......se nosso grande mentor, o imenso Tim Maia estiver certo, hj a mulherada tá barata msm..... não dá pra pagar mais q a tabela msm

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    1. Grande Tim Maia! Sempre soube das coisas. E olha que ele falou isso quando alguém perguntou a ele sobre a Vera Fischer e isso nos áureos tempo dela.
      Sebastião Maia está certíssimo, buceta é problema e só pagar só mesmo a tabela.
      Tá sumido, corno amigo. E aquela gelada?

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    2. É só por pra gelar, mas nada de miséria

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    3. Descobri uma marca muito boa, a Prosit! Ela está na lateral do blog, na seção Boa e Barata

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  4. Saudade dos contos noturnos... Que tal um?

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    1. Tô com falta de tempo e, principalmente, de material para escrever um novo. Mas, mais dia menos dia, aparece um novo por aqui.

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  5. Azarãozinho, também adoro seus contos noturnos. Sempre tem alguém perdendo as pregas. Delícia. Rosquinha.

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    1. Pããããããta que o pariu!!!! Acho que não vai ter jeito, o paudurescente Rubens vai ter que voltar. Verei o que consigo fazer.

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