O Homem Que Nunca Precisa de Despertador

O homem que nunca precisa de despertador nunca deixa libertar-se o grito de seu despertador - um rádio-relógio de visor azul-césio. Acorda e o desativa sempre antes. O despertador do homem que nunca precisa de despertador nunca extravasa pela manhã o berro contido, represado, coagulado durante a madrugada. O homem que nunca precisa de despertador também não.
O homem que nunca precisa de despertador, em todos os dias úteis (embora jogados fora), às cinco da manhã, cruza por sobre o rio de sangue pardo e ralo que carrega o nome da cidade. Sujo, mau cheiroso e, não obstante, e talvez por isso mesmo, repleto de vida - nenhuma vida surge e/ou se sustenta no estéril, no asséptico, no banheiro desinfetado com amônia e água sanitária, na boca enxaguada, três vezes por dia, com Listerine, no pau e na buceta depilados e lavados imediatamente após a foda.
O lodo podre e ponceleônico, as algas a dançar, odaliscas sinuosas do jardim submerso dessa Babilônia. A, de todos os dias, garça-branca a granjear o seu desjejum; os menos presentes corós-corós; e o, que pouco dá as caras, cara de poucos amigos, martim-pescador. O homem que nunca precisa de despertador gosta dele, especialmente.
O homem que nunca precisa de despertador trabalha (o que não implica em produzir) o dia todo. Em ponto morto. Na banguela. O homem que nunca precisa de despertador trabalha rodeado por pessoas que nunca acordam. O homem que nunca precisa de despertador sonha o dia todo com a hora de dormir. Em travesseiros voadores de Bagdá, em casulos de bichos-da-seda. E quando dorme, o homem que nunca precisa de despertador tem pesadelos em acordar.
O homem que nunca precisa de despertador nunca almoça, ou janta. Abastece-se. Frentista corrupto de si mesmo. Põe a queimar alimentos adulterados, batizados, com data de validade vencida : o pão de cada dia veiado de mofo e de bolor.
O homem que nunca precisa de despertador nunca falta ao serviço, não desrespeita as normas, não infringe as leis, não incomoda os vizinhos com música alta, cede lugar a idosos no coletivo, não contrai dívidas nem abre crediários, não deve nada a ninguém e em ninguém nunca deu calote, paga seus impostos, separa seu lixo para reciclagem, fecha a torneira enquanto lava a louça, escova os dentes ou se ensaboa no banho, doa sangue amiúde.
Um único delito. Um único pecado. Um único escuso. Que é para se lembrar de que é humano. Em todos os dias úteis (embora jogados fora), às cinco da manhã, três quarteirões adiante da ponte (a por sobre o rio sujo, o das algas, o da garça-branca, o dos corós-corós, o do martim-pescador, a resplandecerem, fogos-fátuos, do mefítico), ele entra no supermercado 24 h e compra e toma um latão de cerveja. Seu único delito. Seu único pecado. Que, na prática, nem assim podem ser configurados. Para que sejam configurados em delito, em pecado, a condição básica é que alguém os testemunhem. Ou o homem, ou Deus - que, dizem, para isso foi criado, para que o pecador saiba (pense, acredite) que, ainda que fuja às vistas e à justiça dos homens, estará sempre sob as câmeras vigilantes de Deus. 
Quanto aos homens, às cinco da manhã, só há o homem que nunca precisa de despertador pelas ruas ainda bocejantes e cobertas pelo escuro a desbotar. Quanto a Deus, o homem que nunca precisa de despertador sabe que, há muito, o Todo-Poderoso perdeu-lhe o interesse.
O homem que nunca precisa de despertador - um rádio-relógio de visor azul-césio, no qual também nunca sintonizou nenhuma AM/FM - nunca precisou, igualmente, da batedeira (quando, em raro, tem vontade de um pedaço de bolo de fubá, o compra à padaria), da cafeteira elétrica (coa seu amargo café num puído coador de pano), do micro-ondas (gosta de comida fria, ou, ao menos, não se importa, não lhe faz diferença), da TV (a última novela a que assistiu foi Roque Santeiro; o último filme, uma reprise no Corujão, Um Dia de Fúria).
Mas a todos mantêm guardados. Na esperança - quem sabe, quem poderá saber? - de um expresso tomado com amigos (para os quais não telefona) enquanto o bolo de fubá com sementes de erva-doce cresce no forno; ou de reassistir, na Sessão da Tarde, em um dia chuvoso e choroso, ao O Pássaro Azul (mas se contentaria com  Curtindo a Vida Adoidado) acompanhado por um enorme saco de pipoca de micro-ondas.
Mas, sobretudo, tem predileção e conserva - lustrado, desempoeirado, fios e bateria de emergência sempre em dia - o seu rádio-relógio, o de visor azul-césio. Na esperança de uma noite de sono tranquilo, de um pulo ao abismo da inconsciência bem atado por uma corda de bungee jump aos tornozelos, de um flerte com a morte.

Postar um comentário

2 Comentários

  1. O discreto segredo do homem secreto - o homem nu
    "J"

    ResponderExcluir
  2. Não repare o comentário de pedreiro, mas hoje eu vivo em um horário de verão perpétuo. O que isso tem a ver com o texto? Nada. E o texto é bacanérrimo.

    ResponderExcluir