A Frase

Meu amigo JB, dono, presidente, acionista majoritário e ombudsman do Blogson Crusoe, nos últimos dez dias, autoinfligiu-se uma tarefa hercúlea : sintetizar em 20 postagens o melhor de Millôr Fernandes. 
Millôr foi o da Vinci brasileiro, jogava nas onze posições e ainda fazia as vezes do juiz, dos bandeirinhas, dos gândulas, dos repórteres de campo e dos comentaristas. 
Millôr foi desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, poeta, tradutor, cronista, jornalista e, a sua faceta que mais me agrada, e, aparentemente também ao JB, um frasista de alto quilate. 
Ser um bom frasista, na minha opinião, é difícil pra caralho! Sintetizar em uma única oração, no máximo em dois ou três períodos, verdades atemporais e beirando o absoluto, não é tarefa pra qualquer gênio. Muitas vezes, o cara escreve um livro com 500, 600 páginas; aí vem o frasista e diz tudo o que ele disse em duas linhas. E Millôr foi desses gênios. 
Paradoxalmente, a melhor coisa que já li sobre o poder da frase não foi do Millôr, nem foi uma frase, foi uma crônica. De outro gênio de nosso humor/jornalismo/literatura, Luis Fernando Veríssimo. Sua crônica, A Frase, que reproduzo abaixo, é magistral, irretocável.
Essa é para você, JB 

A  frase
por Luis Fernando Veríssimo

O melhor texto de publicidade que eu já vi era assim: uma foto colorida de uma garrafa de uísque Chivas Regal e, embaixo, uma única frase: “O Chivas Regal dos uísques”.
O anúncio é americano. Em algum anuário de propaganda, desses que a gente folheia nas agências em busca de idéias originais na esperança de que o cliente não tenha o mesmo anuário, deve aparecer o nome do autor do texto. No dia em que eu descobrir quem é, mando um telegrama com uma única palavra. Um palavrão. Que tanto pode expressar surpresa quanto admiração, inveja, submissão ou raiva. No meu caso, significará tudo ao mesmo tempo. Palavrão PT Segue carta explosiva PT Abraços etc.
Duvido que o autor da frase receba o telegrama. O cara que escreveu um anúncio assim não recebe mais telegramas. Não atende mais nem a porta. Não se mexe da cadeira. Não lê mais nada, não vê televisão, não vai a cinema e fala somente o indispensável. Passa o dia sentado, de pernas cruzadas, com o olhar perdido. Alimenta-se de coisas vagamente brancas e bebe champanhe brut em copos de tulipa. Com um leve sorriso nos cantos da boca.
Foi o sorriso que finalmente levou sua mulher a pedir o divórcio. Ela agüentou tudo. O silêncio, a indiferença, as pernas cruzadas, tudo. Mas o sorriso foi demais.
“Bob (digamos que o seu nome seja Bob), você não vai mais trabalhar?”.
Sorriso.
“Nunca mais, Bob? Há uma semana que você não sai dessa cadeira”.
Sorriso.
“Bob, o Bill disse que o seu lugar na agência está garantido, quando você quiser voltar. Mas eles não podem continuar pagando se você não voltar”.
Sorriso.
“As crianças precisam de sapatos novos. O aluguel do apartamento está atrasado. Meu analista também. Nosso saldo no banco se foi com a última caixa de champanhe que você mandou buscar”.
Sorriso.
“Sabe o que estão dizendo na agência, Bob? Que o seu texto para o Chivas Regal foi pura sorte. Que foi genial, mas você não faz dois iguais àquele. Você precisa ir lá mostrar para eles, Bob. Faça alguma coisa, Bob!”
Bob fez alguma coisa. Descruzou as pernas e cruzou outra vez. Sorrindo.
A mulher tratou do divórcio sozinha. Na hora das despedidas, ele inclinou-se levemente na poltrona para beijar as crianças mas não disse uma palavra. Continua sentado lá até hoje.
Levanta-se para ir ao banheiro, trocar de roupa e telefonar para fornecedores de enlatados e champanhe. Os que ainda lhe dão crédito. O resto do tempo fica sentado, as pernas cruzadas, o olhar perdido. E o sorriso.
Uma faxineira vem uma vez por semana, limpa o apartamento (há pouco o que limpar, ele não toca em nada) e vai embora. Abanando a cabeça. Pobre do sr. Bob. Um moço tão bom.
Os amigos preocupam-se com ele. A agência lhe faz ofertas astronômicas para voltar. Ele responde a todos com monossílabos e vagos gestos com o copo de tulipa. E todos vão embora, abanando a cabeça.
Contaram que a mesma coisa aconteceu com o primeiro homem a escalar o Everest. Para começar, quando chegou no topo, no cume da montanha mais alta da Terra, ele tirou um banquinho da sua mochila, colocou o banquinho exatamente no pico do Everest e subiu em em cima do banquinho! O guia nativo que o acompanhava não entendeu nada. Se entendesse, estaria entendendo o homem branco e toda a história do Ocidente. De volta à civilização o homem que conquistou o Everest passou meses sem falar com ninguém e sem olhar fixamente para nada. Se tinha mulher e filhos, esqueceu. E tinha um leve sorriso nos cantos da boca.
Você precisa entender que quem escreve para publicidade está sempre atrás da frase definitiva. Não importa se for sobre uísque de luxo ou uma liquidação de varejo, importa é a frase. Ela precisa dizer tudo o que há para dizer sobre qualquer coisa, num decassílabo ou menos. Tão perfeita que nada pode segui-la, salvo o silêncio e a reclusão. Você atingiu o seu próprio pico.
Bob tem duas coisas a fazer, depois de passada a euforia das alturas. Uma é voltar para a agência, mas com outro status. Por um salário mais alto, apenas perambulará pelas salas para ser apontado a novatos e visitantes como o autor da frase, aquela.
“Você quer dizer… A frase”“
“A frase”.
Outra é começar de novo em outro ramo. Com uma banca de chuchu na feira, por exemplo. Ele não precisa conquistar mais nada, é o único homem realizado do século.
Mas por enquanto Bob só olha para as paredes. De vez em quando, diz baixinho:
“O Chivas Regal dos uísques…”
E aí atira a cabeça para trás e dá uma gargalhada. Depois descruza as pernas e bebe mais um gole de champanhe.
(Extraído do livro da seleção de crônicas do livro “Comédias da Vida Privada”, de L.F. Veríssimo, pág. 49, Edit. L&PM)

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2 Comentários

  1. Essa crônica eu não tinha lido ainda, mas é das melhores.

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  2. A resposta estava um pouco grande. Assim, resolvi fazer um agradecimento público. Olhaí. https://blogsoncrusoe.blogspot.com.br/2017/10/corporativismo-de-blogueiros.html

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