Pequeno Conto Noturno (64)

Num arroubo muito mais de tédio que de rebeldia, ou que de som, ou que de fúria, ou que de claustrofobia existencial, Rubens resolve ganhar as ruas e retomar prática antiga, dos áureos e plúmbeos tempos - foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos.. -, quando ia até a rodoviária, parava aleatoriamente em frente ao guichê de uma empresa de ônibus e, quase tão aleatoriamente quanto, havia apenas o critério da distância não ultrapassar os 200 km, escolhia uma cidade e comprava a passagem; Rubens andava durante a noite pelo desconhecido território - seus potenciais riscos, seu reconfortante anonimato -, sentava-se e bebia em seus bares pela madrugada, ignorava os bêbados e as putas e, no primeiro horário que houvesse pela manhã, embarcava de volta, ou de sua deserção.
Hoje, embora a essência da fuga, ou do voo, seja a mesma, o destino nada tem de randômico. Rubens se decidiu por uma cidade a 90 km da sua, cidade de porte médio, onde residira por três anos, por conta da posse de um cargo público; e quinze anos já se vão de sua volta.
Rubens põe a surrada mochila nas costas e os pés no asfalto. Pelo que lembrava, o último ônibus saía às 23 h, o que lhe dava quarenta minutos de prazo, mais que suficientes para ele cobrir a pé a distância de quatro quilômetros até a rodoviária.
Rubens passa pela loja de conveniência de um posto de combustíveis para comprar cinco latões de cerveja - um pra tomar no caminho até a rodoviária e os outros quatro para beber no ônibus, uma hora e meia de viagem, mais ou menos.
- Me vê cinco latões da mais barata - pede Rubens ao atendente - tá gelada? - pergunta.
- E se não estiver, você vai levar da mais cara por acaso? - devolve o balconista, sabendo dos hábitos de Rubens.
Esse é o mal de ser habitual de um estabelecimento qualquer, o cara que trabalha ali acaba por se achar íntimo, embora nem mesmo saiba nosso nome, pensa Rubens, e abre um latão ali mesmo e guarda os outros quatro na mochila.
Na rodoviária, procura pelo guichê e pede uma passagem.
- O ônibus tá no horário? -, quer saber Rubens, lembrando-se do rotineiro atraso da linha.
- Eu só vendo passagens, amigo - o costumeiro humor das pessoas que trabalham à noite; Rubens compreende e respeita isso.
Rubens se senta em sua poltrona, abre outro latão e começa a beber assim que o ônibus ganha movimento. Beber em viagens o ajuda a conter o desconforto que sente em ambientes fechados e coletivos, ajuda-o com o desconforto de ter que conversar com alguém que eventualmente ocupe poltrona contígua à sua. Beber, aliás, ajuda Rubens em praticamente todo o contato humano que precise ter. Não que o álcool o torne mais expansivo e gentil e agradável, não que o álcool torne as pessoas mais suportáveis para ele. O álcool abafa o mundo, cria um campo de força em torno de Rubens, uma espécie de camada de ozônio a bloquear parte dos raios UV. As vozes, os rostos, os cheiros das pessoas o atingem com menos intensidade. Só isso.
Rubens dá sorte. No ônibus, o motorista, ele e mais seis passageiros, todos cometendo a delicadeza de se sentarem distantes um dos outros. A cerveja nem teria sido tão necessária, pensa Rubens, mas a tomará assim mesmo; se há algo que Rubens abomina é o desperdício.
Fim do penúltimo latão e Rubens vai ao banheiro de novo - tinha ido há meia hora -, aliviar a velha bexiga, cada vez mais incontinente. Rubens detesta banheiro de ônibus, é uma merda ter que mijar com o veículo chacoalhando e trepidando pelos buracos da estrada, difícil compensar as acelerações e desacelerações, equilibrar-se nas curvas. É foda mijar segurando na maçaneta da porta com uma mão e ter de controlar o pau com a outra.
Rubens deixa mais do que mijo nessa segunda vez. Uma sacudida maior do ônibus e ele vomita tudo na pia; o vômito rescende a cerveja fresca, recém-tomada, ainda não metabolizada, mas Rubens não é de chorar sobre a cerveja vomitada. Limpa a boca com as costas da mão, volta ao seu lugar, abre o último latão, enche a boca com cerveja nova, enxagua com um bom bochecho e se acomoda para beber o resto, e esperar o fim da viagem.
Rubens desembarca. Meia-noite e trinta e quatro minutos, marca o relógio suspenso no teto da triste, suja rodoviária. Rubens corre ao bar, que já está com sua porta corrugada de ferro baixada até a metade e compra mais duas latas, para tomar no caminho enquanto dá uma flanada pela cidade até o Cadafalso Rock Bar, um bar de rock e de blues, motivo de sua excursão noturna, comandado pelo velho Tomás, um mineiro turrão, mal-humorado e das antigas, descendente, segundo o próprio, do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes; o nome do bar, uma homenagem ao antepassado ilustre.
Rubens não espera reencontrar ninguém de sua época no Cadafalso; aliás, torce para que não. Rubens só precisa de um lugar familiar para sentar e beber, um território conhecido onde se sinta seguro por um tempo. O Cadafalso sempre acolhera Rubens quando ele precisou se esconder; sobretudo de si próprio.
Rubens anda e nota que a cidade está mais morta que o de costume. É apenas meia-noite e pouco de uma noite de sexta para sábado. Tudo fechado pelo velho centro. O Bar do Tobias , o Toca da Pantera, o Cabeça de Porco. Acabaram-se os bêbados dessa cidade?, pensa Rubens.
Mais quatro quarteirões e Rubens está de frente ao Cadafalso. Não há Cadafalso. Só um terreno cheio de escombros de demolição cercado por tapumes de madeira vermelha e uma grande placa anunciando a abertura de uma nova agência bancária para breve, mais conforto aos seus clientes.
Rubens se senta ao meio-fio da esquina de frente para as ruínas do Cadafalso. Bebe e pensa no que poderia ter acontecido. Quando? Por quê? Termina a lata e abre a última, já pensando em onde irá conseguir a próxima.
Um carro preto passa por Rubens, subindo devagar a rua. O carro para, dá uma ré, encosta ao lado de Rubens e uma mulher aparece quando o vidro é abaixado. Quarenta e poucos, quarenta e alguns anos. Restos de uma maquiagem cansada na cara. Bonita, dadas a hora da noite e a altura da vida.
- Onde você conseguiu essa cerveja? - pergunta a dona.
- Na rodoviária, antes de descer para cá, mas o bar tava fechando.
- Não é daqui, né?
- Já fui.
- O Cadafalso fechou há uns meses, o Tomás morreu, enfisema pulmonar, morreu sem ar, asfixiado - informa a dona.
- Espero que não o tenham esquartejado, também.
A dona ri. Revela uns belos dentes.
- Irônico, né?
- Sempre é. E o resto da cidade? Não pode ser luto pelo Tomás.
A dona ri, de novo.
- O velho tinha mais amigos do que ele próprio pensava, o velório lotou.
- Para terem certeza de que o velho realmente morrera, pra garantir.
- Até que pode ter sido - diz a dona -; os outros bares foram fechando meio que naturalmente, o movimento começou a cair no centro e a violência a aumentar, hoje tudo fecha às dez, dez e pouco da noite. E essa última cerveja, não quer dividir, não?, tô varada de vontade, saí pra ver se encontrava uma e parece que dei sorte.
- Ninguém dá sorte a essa hora da noite, e não sou um cara solidário.
- Que tal um beijo bem molhado e cheio de língua por um gole dessa lata?
- Um beijo?
-  Dando uma de durão, né? Te faço uma chupeta por metade da lata. E você nem imagina o quanto irá se divertir se me der a lata inteira.
As mulheres vivem acusando a sociedade de machista. Dois terços ou mais das mulheres de Rubens já o acusaram do mesmo. Que as mulheres são objetificadas pelo chauvinismo imperante, coisificadas. Têm até feministas, daquelas de pernas e suvacos cabeludos, de peitos caídos e grelos duros de 15 cm, que alardeiam sobre uma tal cultura do estupro. Absurdo. Mal comidas, isso sim, pensa Rubens. Mal amansadas, nunca levaram uma surra de chicote de rola que as bem domesticasse.
Mas são elas, as próprias mulheres, ao menos de madrugada, ao menos quando não há nenhuma patrulha ideológica esquerdista filha da puta a vigiá-las e à qual tenham de prestar contas, e quando algo lhes interessa e convêm, que oferecem seu corpo e seus préstimos sexuais como moeda de troca.
E como elas os têm em alta conta. Botam o câmbio de suas bucetas lá no alto. A um beijo, dão a cotação do dólar;  a um boquete; do euro; à buceta, do marco alemão; e ao cuzinho, então?, o cuzinho, pensam valer um lingote de ouro 24 k do Forte Knox.
Supervalorizam seus dotes. Quando beijarem, não serão também beijadas, retribuídas? Quando fizerem um boquete, também não terão prazer em ter um falo duro entre os lábios e na garganta? Quando atolarem a xavasca encharcada numa boa verga, também não gozarão? Quando derem o cuzinho, não as estaremos ajudando com suas constipações intestinais e prisões de ventre? Pois, então. Por que tem que ainda  valer algo além do que naturalmente terão em retribuição, em reciprocidade, no caso, a cerveja de Rubens?
Não tem. Buceta como moeda de troca pode até funcionar com machos novos, na casa dos vinte e poucos, mas não surte resultado com um macho das antigas, na casa dos cinquenta, feito Rubens; há dias, e esse é um deles, em que um cara precisa mais de uma cerveja que de uma buceta.
- Preciso pensar um pouco na sua oferta - diz, finalmente, Rubens à dona.
- Pensar?!?!?!? -, a dona em tom de indignação.
- Ver se eu, nesse momento, tô precisando mais de uma cerveja ou de um boquete.
A dona fecha o vidro do carro, gira a chave na ignição, acelera em retaliação ao desprezo de Rubens e sai cantando pneus. Porém, nem cinquenta metros acima, Rubens vê as luzes traseiras dos freios se acenderem. A dona repensa em suas possibilidades para esse fim de noite. Observa a si mesma e pondera sobre sua própria decadência física, sua ruína moral. 
Engata a marcha a ré de novo.  Abre o vidro e concede a Rubens o tempo que ele pedira para pensar.

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7 Comentários

  1. "Latão do mais barato e Rubens abomina o desperdício"
    Essas frases estão se encaixando direitinho com o senhor, além de desprezar uma fêmea por uma cerveja.
    Duas perguntas: quatro latões durante a viagem e não esquentaram?
    Porque Rubens não foi de carro já que abomina as pessoas a sua volta?

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    1. Rapaz, a mochila do Rubens é térmica!!! Se fudeu!!!
      Rubens não foi de carro porque não dirige, não tem nem CNH, só anda a pé.

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  2. As mulheres acusam os homens de serem coisificadas quando elas não pediram por isso, diferente da mulher do seu texto. Paola H.

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  3. Esse Rubens é uma bichona

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  4. Diga-Me, se fosse publicar as histórias de Rubens em um livro, qual nome daria?

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