E Se o Tigre For Broxa?

Depois de mil anos sob o mais tirânico dos jugos, no qual todas as liberdades individuais, sobretudo a do pensamento, foram suprimidas em nome de Deus, em nome da santa Igreja Católica, depois de 10 séculos de Idade Média durante os quais ou o sujeito fingia que era burro ou virava churrasquinho, espetinho de herege a ser vendido na quermesse da Santa Sé (não sem antes passar estripamentos, evisceramentos e suplícios de ordem sexual que iam desde a amputação de seios a empalamento), o ser humano precisou renascer. Precisou promover a própria Renascença, precisou se re-parir, fazer uma autocesariana, arrancar-se a fórceps de si mesmo. 
Precisou, principalmente, reaprender a pensar, retomar o raciocínio lógico, que não é como andar de bicicleta, não; parou de pensar, de pôr à faina a massa cinzenta e ela emperra, empaca. Não pense que a cabeça aguenta se você parar,  já disse Raul.
Houve muito mais instinto que razão pura nessa retomada do pensamento, que o instinto é a forma primeira de aprendizado sobre o mundo. O Renasciscento, por mais belo e produtivo que tenha sido, e ele o foi, foi um período muito mais de observação, comparação, identificação e, mormente, de imitação que de criação, que de surgimento de novas ideias e conceitos. Que é só assim, desgraçadamente, que o ser humano, a não ser que você tenha nascido um gênio, aprende : observando, comparando e imitando à exaustão o seu derredor. É a infinita repetição que promove o aprendizado. É o Kumon da vida. 
Não à toa, o Renascimento foi o resgate dos valores clássicos gregos e romanos : primeiro, observar e imitar algo no qual se reconheça e, uma vez hábil nisso, uma vez adquirida certa proficiência, tentar alçar voo próprio. 
É dessa forma que a criança ou qualquer outro filhote aprende. É por isso que os primeiros sons inteligíveis que saem da boca de uma criança assemelham-se ao que chamamos de palavras e não ao urro de um leão, ou ao trinado de um rouxinol. É por isso que a criança cambaleia e claudica sobre suas fracas pernas buscando a postura bípede e não fica a agitar os braços tentando levantar voo. A criança observa o mundo, compara-se com ele, identifica-se com os pais - e não com o gato, com o cachorro, com o periquito da casa, ou com os peixinhos do aquário - e passa, então, a copiá-los.
Basicamente, isso foi o Renascimento, um período de copiar os pais, aprender com eles, para emancipar-se depois. Para a nossa sorte, a Renascença contou com exímios observados e inigualáveis imitadores, copistas geniais como nunca dantes vistos, que nos legaram inestimável patrimônio artístico, mas não foi um período de criação por excelência, foi um período de domínio da técnica, de reaprender a manejar o pensamento e suas ferramentas, de readquirir o traquejo para o próximo estágio, o Iluminismo, a Idade da Razão, na qual o pensamento, já emancipado de seus pais greco-romanos, começou a gerar novos conceitos e ideais; se melhores ou não, se mais ou menos brilhantes que os de seus antecessores, já é uma outra questão.
Do Renascimento vem uma das formas de pensamento - instintiva - ainda muito comum hoje em dia, ainda pensamos sob o seus ditames em grande parte das situações que vivemos, uma vez que a maioria de nós nunca foi apresentada ao pensamento sistematizado de um Descartes, por exemplo : a Doutrina das Assinaturas, do médico e alquimista alemão Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541), o Paracelso, para os íntimos e os iniciados.
A grosso modo, a Doutrina das Assinaturas, ou ainda As Assinaturas do Criador, verifica e constata semelhanças estruturais entre seres humanos e as outras espécies e infere a elas a mesma funcionalidade. A mais grosso modo ainda, quase a chulo modo, o que Paracelso postulava era : se é parecido, serve para a mesma coisa.
Para Paracelso, as similaridades de certos alimentos com estruturas do corpo humano eram assinaturas de Deus para que nós as reconhecêssemos e tirássemos proveito delas. Dizia que Deus formulava a cura de uma doença indicando um sinal comparativo em sua fonte. A exemplos : uma orquídea cuja flor se assemelha a testículos humanos pode ser usada no tratamento de doenças venéreas; a cenoura, se cortada em rodelas, exibe uma assinatura de Deus que lembra muito a íris humana, logo, é boa para doenças da visão, e a prova é que ninguém nunca viu um coelho usando óculos. Instinto. Picaretagem. Pura picaretagem.
Quer dizer que Deus põe a cura em vegetais e os faz semelhantes aos nossos órgãos para que deles nos valhamos? Porra. Não era mais fácil não criar a doença? E o Velho Safado ainda fica brincando de esconde-esconde com o desgraçado do doente. Se o cara tá cegueta, como ele vai notar a semelhança entre suas íris e o raiado de uma rodela de cenoura?  
A seguirmos Paracelso, será que o consumo regular de uns melões bem grandes e suculentos livra a mulher do temível câncer de mama, e, de quebra, ainda os torna maiores, mais rijos e doces? Será que incluir a pimenta dedo-de-moça na dieta diária livra o macho de respeito do famigerado dedo do urologista, do exame de toque?
Picaretagem. Pura picaretagem. Charlatanismo dos brabos. Puro instinto, tal forma de pensar. Nada de sistemático, só observar, comparar e inferir um monte de bobagens. Nenhuma lógica nesse tipo de ideia. Por isso mesmo um perigo muito grande nela reside. Ela é aceita e assimilada de forma instantânea - uma vez que instintiva -, não tem a necessidade de fornecer maiores provas para que seja abraçada pelo senso comum : abre o caminho para todo o tipo de charlatanismo. O mais célebre desses charlatanismos, que até ganhou ares de ciência, é a Homeopatia, com seu dogma máximo, Similia similibus curantur, semelhante cura semelhante. Paracelso puro. Má-fé pura.
É desse tipo de ideia que partem, também, as mais diversas atrocidades contra animais, especialmente os considerados selvagens, viris e fodelões. Sempre preocupado com sua paudurescência, o bicho homem busca nos ensinamentos de Paracelso a cura para os seus males. No Brasil, por exemplo, o boto amazônico, que quando assume a forma humana para emprenhar desavisadas ribeirinhas, atende pelo nome de Carlos Alberto Riccelli, tem o seu pênis, o seu cacete, usado em sopas, garrafadas, ou, ainda, desidratado, feito em pó e adicionado às refeições. Na China, é o tigre quem paga o pato da paumolescência humana. Sua benga também é consumida na forma de ensopados e seus testículos viram pó que é adicionado à comida, uma espécie de Sustagen pra broxa, ou bebido em infusões.
Mas eis a pergunta que não quer calar : ainda que Paracelso esteja certo, ainda que formas semelhantes tenham funcionalidades semelhantes e possam transmitir suas propriedades curativas, e se o tigre for broxa, meu amigo, e se o tigre for broxa? E se o felino abatido e sacrificado for mais afeito a um outro tigre-de-grande-bengala ao invés de uma xaninha listrada? Aí, quem fica duro é o cu? E se o tigre for broxa, meu amigo?
Isso tudo, por uma dessas associações, admito, a la Paracelso, me fez lembrar do grande e inigualável filósofo iluminista Genival Lacerda, que sabe tudo da Doutrina das Assinaturas, que põe Paracelso no chinelo, como bem demonstra na sua música Transplante de Coração, cuja letra narra o infortúnio dum cabra macho que recebe o coração de um "doador desmunhecado". Genival Lacerda é o Paracelso brasileiro.
Transplante de Coração
(Genival Lacerda)
Corre seu doutor
Pode operar
Que o coração vai pifar


Acuda seu doutor
Arranje um doador
Que ele tem a sua mãe pra sustentar


Mas tudo correu bem
Foi tudo normal
Na mesa de operação
O doutor falou pra ele
Moço você é felizardo
Está curado, pois não houve rejeição

O cabra ficou bom
Mais ficou desconfiado
Recebeu o coração
De um doador desmunhecado

Foi o maior sucesso
Ele ficou curado
Pois a sua salvação
Mais o novo coração era muito delicado
O doutor contou pra ele
Com muita manha pra não haver zanga
Pois aquele coração precisava da atenção
Pra não soltar a franga


Para ouvir, é só clicar aqui, no meu poderoso MARRETÃO

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2 Comentários

  1. A erudição foi esbanjada neste post! Muito bom! Uma coisa que é motivo de piada entre meus filhos é o fato de minha irmã, médica, ter feito curso de homeopatia e hoje só atender nessa linha. Meus filhos comentam o risco que ela corre se tomar apenas meio copo de cerveja (nem sei se bebe). A diluição será tão intensa que poderá até entrar em coma alcólica. JB

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    1. E olha que a cerveja já é praticamente um álcool homeopático, 4 ou 5%, um floral de Bach. Tanto que eu nem considero a cerveja uma bebida alcoólica, mas sim um fitoterápico.

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