Angelina de Milo

A bela, um belo dia, recebeu a notícia de uma rachadura em seu mármore renascentista; eufemismos à parte, uma fenda, uma cratera.
A bela (que, verdade seja dita, não vive mais da beleza, mas que via ela se fez e lhe é inegável e evidente atributo, que ainda a carrega feito uma cicatriz agradável de se olhar, que é isso o que a beleza em demasia é, uma anomalia, uma deformidade agradável de se olhar) foi informada de uma falha em seu gene BRCA1, um fantasma a lhe assombrar com a chance de 87% de desenvolver câncer de mama, de um tipo dos mais selvagens, indomável.
A mesma falha gênica que matou prematuramente a também bela mãe da bela. A bela tem filhos. Pequenos. Quer vê-los crescer sob seus auspícios, não quer gravar-lhes o trauma de uma mãe a definhar e a apodrecer, de não ser mais capaz de ser mãe.
Contar com os 13% de probabilidade do câncer jamais eclodir? Com a sorte? A bela também é inteligentíssima, sabe que não existem essas crendices de sorte; existissem - ou, no mínimo, uma mínima justiça -, e ela não teria nascido com o gene troncho.
A bela não teve dúvidas - ou se as teve, não foi detida por elas, como a maioria dos mortais se deixa deter : submeteu-se a uma mastectomia dupla, à retirada de seus dois seios, como forma de reduzir as probabilidades de uma futura manifestação do câncer.
Decidiu, a bem dos  seis filhos, "ser proativa e reduzir o risco o máximo que eu podia".
Já não deve ser fácil se decidir pela e autorizar a amputação de um órgão condenado, por gangrena, trombose, necrose, metástase, ou o que for. O que dizer, então, da decisão de se alijar de órgãos ainda saudáveis? Órgãos que, apesar de carregarem grandes chances, ainda não manisfestaram a moléstia, nem indícios dela? O que dizer, então, se esses órgãos forem precisamente os seios, o diferencial supremo da beleza feminina?
A bela em questão é a mais bela das belas, é Angelina Jolie. A atriz de 37 anos explicou que sua mãe lutou por uma década contra o câncer, em vão, e que ela, Angelina, procurou dessa forma, através da mastectomia, garantir aos seus filhos que a mesma doença não a tire deles. A cirurgia, diz a atriz, reduziu a chance de câncer para menos de 5%.
Surgida como filha do grande ator Jon Voight, Angelina foi uma das maiores porras loucas de Hollywood, rebelde, doidivanas, drogada, ninfomaníaca bissexual, uma delícia, em suma. Desde a primeira vez que a vi, não me lembro em que filme, e isso é o de menos, percebi logo de cara que não se tratava de  uma mulher, era uma força da natureza que assumia as formas de uma - e que formas! -, um elemental, um desses agentes zombeteiros da natureza que, vez por outra, resolvem passar umas férias em corpos humanos.
De uma hora para outra, transfigurou-se. Chocada pela realidade com a qual se deparou no Cambodja, onde gravou o filme Amor sem Fronteiras, e atordoada por um grau de miséria que jamais supôs existir, miséria humana imposta por humanos, a bela e inconsequente Angelina parece ter sido exorcizada de seu elemental.
De pronto, adotou uma criança cambodjana orfã, e passou a se dedicar, junto à Unicef, órgão da ONU do qual se tornou embaixadora, a causas humanitárias por todo o planeta, sobretudo questões que envolvem crianças expostas a condições sub-humanas. De elemental, promoveu-se a mãe adotiva dos desvalidos.
Agora, do meu ponto de vista, a amputação dos seios saudáveis em prol de sua prole, o sacríficio da carne por sua carne, coloca Angelina Jolie em um patamar infinitamente superior ao da elemental gostosa, tanto que nem sei dizer que patamar seria esse. Só não a digo uma deusa-mãe porque deuses são idiotas inventados por idiotas. 
Oh, pedaço de mim, Oh, metade arrancada de mim, diz a música do Chico, canta a mulher cuja metade foi levada pelo amor que partiu canalhamente, que a abandonou, que arrancou-se, enfim. A metade arrancada pelo amor que se foi, e sem a qual a personagem declara-se à míngua, era o pedaço mais importante da mulher.
Oh, pedaço de mim, Oh, metade amputada de mim. O pedaço de mim de Jolie não foi extirpado por um amor fujão, sonso e ladrão, não foi a metade que se perdeu por amor; antes pelo contrário, foi a metade que ficou por amor, a metade que se quis deixar ficar por amor, que não foge nem abandona os seus. A metade exilada de Jolie, a que se foi, os seus seios, não era sua parte mais importante, sua metade melhor é a que ficou, a mãe. Não há lamento, feito a desiludida de Chico, pela metade que se perdeu, há o acolhimento e o festejo à metade que permaneceu, viva e providente.
De elemental ninfomaníaca, Jolie se elevou a muito mais que uma deusa-mãe. Alçou-se a canção do Chico Buarque, uma canção melhorada do Chico.
E chega. Que elogio maior, desconheço.

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3 Comentários

  1. Essa eu sabia que viria.....mais cedo ou mais tarde....parabéns pelo texxxxxxxxxxxxxto.
    Abraço

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    1. Aprendeu a escrever "texto", né, corno amigo?
      É o marreta levando cultura à blogosfera.
      Quando é que vamos tomar aquelas boas cepas?
      abraço

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  2. Justa, mais que justa homenagem.
    Viva a Angelina.

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