O Humano Nu

Em minha caminhada diária rumo ao trabalho, de uns 4 km aproximadamente, atravesso todo o centro da cidade, inclusive a região chamada de "baixada". Local de prostituição em cujas calçadas, pela manhã raiante, não são incomuns poças de vômito, camisinhas usadas, roupas intímas perdidas e amontoados de merda humana. Normal.
Semana passada, porém, eu a descer pela rua, a um quarteirão, quarteirão e meio de distância, vi uma figura anômala, mesmo para aquela região da cidade. Havia algo em desacordo na figura, alguma coisa fora do lugar e que, até pela distância, eu ainda não havia detectado o que fosse. Mais uns passos e constatei que aquele indivíduo, magro, alto, meio mulato, estava completamente nu. E passava um jornal ou um pedaço de papelão na bunda, como que a se limpar.
Atravessei para o outro lado da rua e continuei a andar, acabada a limpeza da bunda, o cara peladão sentou-se ali mesmo, na calçada, e dobrou-se ao meio, abraçando os joelhos, com a cabeça entre eles. E nem se dava pelos poucos passantes, estava alheio ao mundo, talvez drogado, sei lá.
Ao passar por ele, vi a seu lado o que havia restado de suas roupas, uma bermuda imersa num alagado de bosta. O cara não se aguentou, cagou-se todo e acabou lá, nu. Além de mim, os poucos que por ali passavam também olhavam àquilo com estranheza, piedade, medo, nojo, mas principalmente com incredulidade.
Nem eu nem os outros estávamos acostumados a ver um humano reduzido ao seu estado mais primal, puramente instintivo, sem nenhuma artificialidade.
Tenho cá comigo que todo o esforço do homem em construir seu conhecimento, suas tecnologias, erigir suas civilizações e até seus deuses, tem como objetivo primário, ainda que inconsciente, o de se negar como o animal que é, milênios de desenvolvimento humano destinados a um único intento, disfarçar sua natureza animalesca.
Nós nos depilamos, escovamos os dentes (não gostamos de nossos gostos e hálitos), cortamos nossas unhas, tomamos banho, lançamos mão de sabonetes, xampus, perfumes, cremes e uma infinidade outra de produtos que escondem nossos odores, nosso próprio cheiro nos parece podre, usamos roupas que disfarçam nossas imperfeições. Já pararam para pensar quanta tecnologia e dispêndio de energia há nessas poucos coisas que listei?
Pois bem. O cara nu, peludo, cagado e fedido punha abaixo todo esse esforço para não parecermos animais, demolia toda a empáfia humana em se julgar diferente e melhor. Daí o mal-estar dos que por ele passavam, inclusive o meu.
Contei o ocorrido para uns poucos colegas do trabalho, para aqueles com pontos de vista mais afins aos meus. Depois de feitas as considerações, o nó da questão foi em como um sujeito chega a tal ponto de degradação, o que faz com que uma pessoa fique daquele jeito, totalmente destituída de humanidade?
Destituída de humanidade, isso foi consenso geral entre meus pares.
Não concordo com eles. Fiquei quieto, não prolonguei a discussão, mas não concordo com eles.
O cara pelado, peludo, embosteado e fedorento não estava em nada destituído de sua humanidade.
Pelo contrário, ele estava totalmente revestido de humanidade, a humanidade impregnava e emanava de cada um de seus poros naquele momento, nada havia ali que humano não fosse, nada havia ali de artificial.
O cara nu estava pleno de humanidade. E só dela!
Por isso, a estranheza. Por isso, a repugnância.
A repulsa por isso.

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