Um Dia na Vida (6)

Sete da manhã e umas quirelas de minutos, 10, 12. Eu já em plena atividade, porém, ainda no piloto automático, operando por aparelhos. Apesar da cavalar dose de café (amargo) ingerida em casa e da outra, elefantina e melífera, tomada à chegada no trabalho, ainda sigo no piloto automático.
O que não é, como a expressão "piloto automático" geralmente dá a subentender, dado o meu entorno, ruim. O que, nesse caso, é bom : ao menos, sigo. Por rota trilhada há mais de 20 anos, por rumo, por instinto, por costume, cego, surdo e mudo, mas sigo.
Pior fica quando acaba o expediente do piloto automático e ele bate o seu cartão e vai para casa e o manche passa para o modo manual, para as minhas mãos. Quando tenho que seguir de olhos abertos pelo trem-fantasma.
Sete e algumas migalhas da manhã e eu falo para um amontoado de gente - 42 ou 43 num recinto que, dificilmente, supera os 50 metros quadrados. Falo da indigesta química da digestão humana. Falo da mastigação, da insalivação e da demolidora ptialina, que reduz, a golpes de marreta, o portentoso e esnobe amido a humildes maltases.
(Uns oito ou nove dormem debruçados sobre suas carteiras, sobre suas mochilas, seus agasalhos de moletom em travesseiros improvisados - ou internet até de madrugada, ou a maconha fumada à entrada da escola, ou puros desinteresse e desfaçatez, ou alguma verminose, sabe-se lá)
Falo do bolo alimentar escorregando pelo tobogã do esôfago e mergulhando na piscina de ácido clorídrico do estômago, dos tubarões de pepsina à espera, ávidos por desmembrar e esquartejar desavisadas proteínas.
(Uns 15 ou 20 começam, então - resolvem, então -, a abrir suas mochilas e a buscar pelo material da aula - uns oito ou dez, percebo, percebem que não o trouxeram, e se juntam ao time dos hibernantes) 
Falo do bolo alimentar, agora chamado quimo, escalavrado pelo ácido, seguindo caminho pelos subterrâneos, pelas catacumbas e fossos do duodeno, pelos seus alçapões e arapucas, pela sua flora carnívora, sôfrega por gordos, roliços e suculentos lipídios.
(Uns seis ou sete, dominados pelo vício, se arriscam no uso de seus telefones celulares, pecado dos mais mortais que alguém pode cometer dentro de meus domínios, em meu ecossistema - são repreendidos duramente, resmungam algo em inútil protesto e também se juntam à turma dos sonolentos)
Falo, finalmente, do bolo alimentar, agora fecal, sugado e subtraído de toda sua alma química, seguindo pelo túnel do intestino grosso rumo à luz.
(Não mais que meia dúzia chega ao fim da jornada, junto comigo e com o bolo fecal. Não mais que meia dúzia manteve olhos e ouvidos atentos a mim o tempo todo. E quantos desses tinham também o cérebro atento por detrás de seus olhos e ouvidos vidrados? Quantos realmente absorveram algum nutriente de conhecimento? Quantos não saíram do jeito que entraram, desnutridos, anêmicos e anoréxicos de saber?)
Não obstante, alheia e indiferente a quaisquer dramas ou frustrações prosaicos e comezinhos, a merda continua a ser feita.
Tranquilamente.

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1 Comentários

  1. Lembrei da minha época de estudante. Meu professor de biologia era do tipo meio rebelde, comunista, sei lá o quê. Calça rasgada, trança no cabelo, sandálias de Jesus Cristo popstar e violão. Colégio particular, estilo militar, ele e o irmão gêmeo professor de física eram um evento, mas essa pavulagem nunca me convenceu muito não. Acho que preferia as aulas da minha professora de redação, gente fina, sem firulas, corretora da Paka-tatu, mas engraçado isso lembro de cada um dos meus professores da escola e da faculdade, claro dos péssimos aos fodásticos (dormindo ou não na aula rsrs). E gostei do esquema do texto, sei que dá trabalho enumerar, mas é bem legal.
    "J" - turista (na faculdade)

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