Um Dia na Vida (3)

Sexta-feira. Seis e meia da manhã. Cruzamento de uma grande avenida. Cansaços acumulados e empapados nas frontes e embaixo dos sovacos, esperança (quase sempre vã) de descanso no sábado e domingo, faixas de pedestres empalidecidas, semáforos psicodélicos.
Ela salta de uma van, ao meio-fio, apressada, quase tromba com ele, mas não o vê. Não olha para ele. Loira wellaton, óculos escuros ray-ban caçador (provavelmente um genérico chinês), cabelos presos em um rabo de cavalo, boa crina, boas ancas. Ele a olha. Não com grandes interesses. Com a obrigação biológica do macho que fareja a fêmea.
Atravessam a avenida quase que paralelamente, ela apenas um ou dois passos à frente. Ela tropeça, deixa cair uma pequena bolsa, de nylon azul-escuro, com o zíper mal fechado. Uma banana, um suco de laranja em embalagem tetra pak e um recipiente plástico retangular com a tampa suada pela comida posta ali ainda quente - uma versão moderna dos antigos boias-frias - vão à luz, tornam-se em novos e inusitados pedestres.
Automaticamente, ele se abaixa e a ajuda. Entrega-lhe a banana e o suco em tetra pak. Então, ela olha para ele. Ao menos, mira o rosto em sua direção. Os óculos escuros impedem que ele saiba se ela realmente o olha nos olhos. Ela agradece. É o mínimo..., responde ele.
Os lábios dela se reconfiguram em um sorriso. Ele ainda não vê os olhos. Não sabe se os olhos dela também sorriem; o único sorriso confiável, o dos olhos (Sorris não só com os lábios, com todo o rosto. Até com tuas orelhas, sorris..., lembra ele de um verso de um antigo poema).
Aos lábios, esses escravos do bom convívio social, sempre foi imposto o sorriso, não lhes é uma opção; os lábios, outdoors de publicidade enganosa da alegria e da felicidade. Só é legítimo o sorriso dos olhos. Porque não sabem que sorriem.
Chegam à calçada. Ele segue reto. Ela vira à esquerda. Em direção às suas vidas. Aos seus mínimos.

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