Ao Birdman Aninhado em Cada um de Nós (Ou:As Minhas Sinceras Desculpas a Michael Keaton)

Assisti a Birdman. Por acaso. E improvavelmente. Assistia muito a filmes em minha infância, adolescência e substancial parte de minha idade adulta. Arriscava-me em filmes russos, catalãos, escandinavos, iranianos, vi muita coisa boa, muita coisa ruim, também. Arriscava-me. Tinha tempo para me arriscar. Nunca fui cinéfilo, desses chatos que sabem o nome do diretor, o ano da filmagem, o autor da trilha sonora, o nome do contrarregra, do iluminador etc; fui um grande assistidor de filmes, somente. Hoje, assisto-os de forma cada vez mais rarefeita. Um pouco por falta de tempo, um pouco, falta de paciência, e muito pela incipiente velhice, fase em que temos definidas nossas preferências e desagrados, já estabelecemos do que gostamos e do que não. Não arriscamos nosso escasso tempo remanescente em duas horas de algo do qual poderemos não gostar; preferimos rever, reler, reouvir; que a velhice não quer atribulações, adrenalina, sobressaltos ou coração saindo pela boca, a velhice quer apenas mais tempo para ser velha.
Assisti a Birdman. Por acaso. Estava a saltar por 180 canais de mais do mesmo, a sacizar pela paisagem imutável da TV a cabo, e parei num canal em que alguém comentava algo sobre Birdman, essas entrevistas, esses making ofs que passam entre os intervalos dos filmes, coisa rápida, 10, 15 minutos, e já o peguei da metade para o final. De forma que, ao assisti-lo, não sabia que era obra do cultuado diretor Iñárritu, muito menos que fosse um dos favoritos ao Oscar. Tanto melhor. Tivesse sabido previamente, provavelmente não o teria assistido. Outro preconceito de velho que trago comigo desde que era jovem : se ganha o Oscar, não pode ser bom.
Assisti a Birdman. Por acaso. Principalmente por curiosidade : pela primeira vez, olhei para Michael Keaton, o protagonista de Birdman, e não vi a sombra do morcego a pairar por sobre a sua face; pela primeira vez, olhei para Michael Keaton e não o associei ao inexpressivo Bruce Wayne, de Tim Burton. Sim, Bruce Wayne de Tim Burton; hoje percebo que a canastrice que Keaton imprimiu a Bruce Wayne nunca veio de suas habilidades (ou da falta delas) como ator, sim da visão deturpada de Tim Burton de como deveria ser o semblante de um milionário fútil e leviano. Maldito seja Tim Burton. Vi o envelhecido Keaton e nenhum bat-sinal estampou-se no céu. Algo havia mudado ali.
Assisti a Birdman. Baixei o filme e o assisti. E gostei (repito : sem saber de que porra de diretor era e que fosse um dos favoritos à estatueta da Academia). Gostei do começo ao fim. No começo, apesar de Keaton (velhos preconceitos são difíceis de demolir); do meio para o fim, por causa de Keaton. Registro aqui minhas mais sinceras desculpas a Michael Keaton.
O mote do filme não é dos mais originais, antes pelo contrário, é a recorrente e aflitiva indagação a respeito da decripitude humana, seja ela física, mental, moral, emocional ou profissional. Keaton é Riggan Thomson, ator que angariou fama e fortuna na pele de Birdman - um personagem de quadrinhos adaptado às telas dos cinemas -, e que caiu em ostracismo ao recusar o papel para estrelar o quarto filme da franquia, para tentar se dedicar a trabalhos mais sérios e significativos, conquistar o reconhecimento como grande ator, e não ser lembrado apenas como uma celebridade do entretenimento.
O filme começa com um já envelhecido Riggan Thomson em um momento de decisiva encruzilhada existencial, numa puta sinuca de bico, na hora do ou vai ou racha. Riggan Thomson apostou todas as suas fichas, tudo o que restou dos dólares de seus dias de glória, na adaptação de uma peça teatral, da qual é produtor, diretor e protagonista, e que ou lhe trará o buscado reconhecimento como ator, ou lhe arruinará por completo.
Ao longo do filme, Thomson tem a companhia luxuosa de ninguém mais ninguém menos que o próprio Birdman. Nos momentos de percalços e contratempos da produção e execução da peça, Birdman voa à volta e assombra Thomson, a mau agourá-lo e a tentar demovê-lo de seu objetivo, a tentar convencê-lo a voltar a ser o Birdman; não voltar a ser, mas convencê-lo de que ele é o Birdman, de que sempre o foi.
Ora Birdman se manifesta apenas como voz, ora como corpo. Em alguns momentos, Thomson cede à pressão de Birdman, às suas lembranças de um áureo tempo, parece mesmo prestes a jogar a toalha, sua realidade mistura-se aos seus delírios e reminiscências, Thomson e Birdman fundem-se, confundem-se. A ponto de, a exemplo, em uma das cenas mais belas do filme, Thomson ter a percepção de que está mesmo a voar por entre os desfiladeiros de arranha-céus de Nova York a caminho do teatro onde irá se apresentar, quando, na verdade, está a realizar o trajeto a bordo de um táxi. Pura esquizofrenia. Da mais tocante e poética.
Muitos viram em Birdman uma relação direta com a carreira do próprio Michael Keaton : alçado ao firmamento de Hollywood pelos filmes Batman e Batman, o Retorno, o ator nunca mais igualou tal sucesso. Haveria em Birdman, portanto, uma dose deliciosa e irresístivel de autoironia, de autodeboche, uma evisceração de Keaton e a consequente exposição em praça pública de suas entranhas, de seus fracassos. E sempre há um grande público para a desgraça alheia.
Mas acredito que não tenha sido essa a origem do inusitado êxito alcançado por Birdman - a morbidez em se consolar com o infortúnio de outrem, tampouco a arte que imita a vida, que imita a arte etc.
E sim porque todos nós, sobretudo os homens, mais ainda os acima dos 40 ou 50 anos, fomos Birdman um dia, por um tempo; e sim porque também já tenhamos tido nossos nunca repetidos sucessos de bilheteria. Aquela fase da vida em que tínhamos mais amigos, divertíamo-nos mais, rendíamos barbaridade em nossos estudos, fazíamos mais planos, comíamos mais mulheres. Aquele período do qual, quando estamos hoje em nossos raros e necessários momentos de solidão e contemplação, nos recordamos e dizemos : bons tempos, bons tempos... Só que chega a hora em que temos que recusar o quarto filme da franquia, em que temos que virar as costas a Birdman : tchau, Birdman, divertimo-nos muito, sou-lhe muito grato, mas tenho que ir cuidar da vida, trabalhar, pagar as contas, amadurecer, casar, criar os filhos, bye-bye, so long, farewell, Birdman, fly, robin, fly. Mas o Birdman não voa para longe, fica nos arredores, nas sombras do quarto, atrás das portas, nos interstícios do guarda-roupas e, sobretudo, em nossas gavetas. E naqueles nossos momentos de fraqueza, de guarda baixa, Birdman vem nos assombrar, deixa disso, diz-nos Birdman, largue de tanta chatice e seriedade, vamos dar uma voadinha por aí, beijar umas nuvens e cagar em alguns telhados. E todos bem sabem da saudade que temos das nuvens e dos telhados.
Para alguns, o Birdman pode ter acontecido aos 15, 18 anos; para outros, aos 30; aos 40; para outros, que afirmam nunca terem sido Birdman, o Birdman pode estar a acontecer no presente tempo, e ser, portanto e por ora, imperceptível. Só sabemos do Birdman, que fomos Birdman, e damos real valor a ele, quando nossas asas perdem sua efetiva função; só nos damos conta de que voávamos quando a dura, áspera e gravítica realidade do chão se impõe como nossa última estação.
Ainda e talvez : o que julgamos ter sido nosso Birdman pode apenas ter sido o ovo do Birdman; tomado erroneamente, em nossa azáfama de fazer a vida se cumprir e se definir, pelo próprio pássaro.
Foi o caso do personagem de Keaton no filme. O Birdman, a celebridade aclamada e ovacionada, foi apenas o ovo do verdadeiro Birdman, do verdadeiro voo, do ator completo e acabado. O fracasso, o ostracismo, o descrédito de público e de crítica, o aprender a lidar com isso - e mesmo a esquizofrenia - foram a ideal bunda de galinha que chocou o ovo, que o burilou, lapidou.
Ou, talvez, e muito provavelmente, não seja nada disso. Talvez nem seja eu a escrever nesse momento, talvez seja meu Birdman, de asas desfraldadas e libertas, pela madrugada e pelo álcool.

Postar um comentário

6 Comentários

  1. Respostas
    1. Obrigado. Achei que ninguém fosse ter paciência para ler o texto todo.
      abraço

      Excluir
  2. Veja também RELATOS SELVAGENS. É sensacional!

    ResponderExcluir
  3. Caí de paraquedas nesse blog, nesse texto. Vou ser obrigado a voltar para ler mais, querima você ou não (rsrs). Parabéns pela sensibilidade.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Espero que tenha feito um bom salto e uma melhor ainda aterrissagem.
      Volte sempre e sinta-se à vontade para opinar, criticar, sugerir.
      obrigado pela sensibilidade em entender o texto, também.
      abraço

      Excluir