Naquela Mesa Tá Faltando Ele...

Depois de muitas idas e vindas, de muitos combinares e protelares, tratos e destratos, acertos e mijadas para trás, finalmente, depois de dois anos de pandemia da Peste Chinesa, os dois Papas da blogosfera ribeirão-pretana, eu, o Azarão, essa criatura abominável que vos fala, e o ex-estranho (pelo menos, ele pensa assim) GRF conseguimos nos encontrar para tomarmos as tão adiadas geladas e jogarmos conversa fora, que, nossas conversas, ninguém quer mesmo comprar.
O nefasto e apocalíptico encontro, como não poderia deixar de ser, se deu num buteco com cerveja boa e barata, o Bar e Restaurante da Pequena Eva. Ou, simplesmente, como é conhecido à boca miúda, O Bar da Eva. O "pequena" é pelo fato da dona, a Eva, ser uma anã. Ops, anã, não; pessoa com déficit de estatura, para sermos politicamente corretos e demonstrarmos empatia.
E o bar é só da Eva, mesmo. Não é o bar da Eva e Adão. Primeiro, para evitar maliciosos cacófatos, cacófatos de tiozão do churrasco; segundo, porque a Eva, hoje, é mulher empoderada, que não se rende aos encantos de qualquer cobra mole, emancipou-se de Adão. Conta-se até que Eva deu uma repaginada nas formas. Fez lipoaspiração, lipoescultura e tirou duas costelas para ficar com uma cinturinha de pilão. Uma das costelas, jogou na cara do Adão e falou : pronto, agora não te devo mais nada.
O Bar da Eva fica encravado no coração safenado do centro velho da cidade, na intersecção da rua Garibaldi com a São Sebastião. Alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruzo a Garibaldi com a São Sebastião... 
E o melhor do bar da Eva é que nunca tem quase ninguém por lá. No máximo, mais uma ou duas mesas ocupadas. E nada de jovens acéfalos em algazarra, de música alta (nem música tem) : só caras da segunda e meia idade para cima. Sossegadíssimo. Mais sossegado que tomar cerveja em casa.
Marcado o encontro para as 19h30, cheguei pontualmente às 19h32. No caminho, já matei um latão de Lokal. GRF já estava lá; na dúvida de se encontraria o bar com as referências que lhe forneci, preferiu pegar um ônibus num horário mais cedo. Na espera, secara uma ampola de 600 ml de Subzero e se preparava para encarar um espetinho de gato.
A pequena Eva veio repor a ampola e eu optei que, daí em diante, iríamos de litrões de Brahma; um melhor custo-benefício.
Pusemos os assuntos da conversa no modo aleatório e o papo foi deslanchando. Falamos de escola (pra quem não sabe, GRF, lá em priscas eras, foi meu aluno no ensino médio; hoje à beira de se tornar um mestre em psicologia), de velhos conhecidos e professores, falou do seu trabalho de psicólogo em creches, presídios e fazendo atendimento a ricos desgostosos com a vida, falou de acidentes de trânsito, de um quase capotamento que sofreu e que só não ocorreu, acredita ele, porque um dos outros ocupantes do carro era um cara que pesava umas dez arrobas, o que estabilizou o veículo, falamos de política, filosofias e lutas (todas assumidamente perdidas), de música, de amores e ex-amores, falamos de pais, avós, filhos e gatos, desencavamos alguns defuntos, conhecidos em comum que já partiram desta pra melhor (ou não), fantasmas dançaram tango ao redor de nossa mesa, pusemos Nietzsche e Raul Seixas no mesmo balaio, idem com o Big Bang e o Gênesis, promovemos um crossover entre a Mafalda (Quino) e o Irmão do Jorel, relativizamos a verdade absoluta, e, claro, falamos mal de muita gente. E litrões atrás de litrões.
Noite de temperatura amena, cerveja boa e barata, conversa boa e de graça, bar quase vazio, reencontro com o GRF, mesa posta à calçada. 
Porém, naquela mesa tava faltando ele. 
O Jotabê, o ermitão do Blogson Crusoe. Cuja presença em muito acrescentaria e abrilhantaria o bate-papo, em muito nos deleitaria com as suas memórias, com os seus trocadilhos infames, com os seus "causos" do amigo (dele, que fique bem claro) Pintão. Quem sabe até não teríamos conseguido tirar dele a versão integral e sem cortes do já mitológico festival universitário de Ouro Preto?
Porém, não obstante ausente em corpo, Jotabê esteve presente em espírito, em memória. Muito conversamos sobre ele. Tanto que sua presença entre nós foi simbolicamente registrada na foto acima. Se ampliarmos a imagem, veremos, ao pé do litrão, a bebida preferida do Jotabê. O Toddynho.
Profundas discussões filosóficas a respeito de como Jotabê prefere saborear o seu Toddynho foram travadas entre mim e o GRF. Jotabê preferirá chupar um canudo ou tomar no copinho? Incapazes de chegarmos a um conclusão arrazoada sobre a predileção de Jotabê, democraticamente, oferecemo-lhe as duas possibilidades. Ele que escolha e ninguém tem nada a ver com isso. Essa é pra você, meu velho. E não é sacanagem, não. Teríamos gostado demais de termos contado com a sua presença.
Aliás, puta que o pariu, Jotabê!!! O toddynho tá o mesmo preço de uma puro malte!!! Não sabia que esse troço era gourmet!!!
O encontro me revelou uma faceta insuspeitada de GRF, a de imitador, a de pândego. Talvez por um respeito hierárquico (apesar dele ser fã confesso de Walden II) à minha posição de professor, GRF, até então, sempre fora muito sério e formal comigo. Até então... Extintas as hierarquias e alguns litrões goela abaixo, GRF mostrou-se um autêntico comediante de stand-up, embora estivéssemos sentados. Imitou o Lula, imitou muito bem, mas até aí, nada de mais, todo mundo sabe imitar aquela desgraça. Na sequência, foi conversando comigo como se fosse o Bolsonaro a tomar cerveja com um amigo. A melhor e mais hilária foi a do Moro. Igualzinho, igualzinho. Imitou até o Putin, e falando em russo. Ou numa língua que garantiu-me ser a russa e, como eu não entendo nada mesmo de russo, acreditei.
Sempre admirei essa coisa do imitador, do cara que pega e emula os timbres e os cacoetes da voz dos outros. Creio que é o que chamam de ter "ouvido", a mesma habilidade de um músico que reproduz uma música de ouvido, sem ter a cifra, ou da pessoa que tem facilidade em aprender um outro idioma. GRF fala português, espanhol, inglês e russo; modestamente, admitiu que o russo ele "só" fala, não escreve. Também manda bem no baixo e na guitarra, e tudo de forma autodidata. Quanto a mim, nem preciso dizer que meu ouvido só serve para me acordar de madrugada por causa de alarmes de carros ou de latidos de cachorro.
A agradável tertúlia se estendeu das 19h30 às, mais ou menos, 23h30, quase meia-noite. Quando a Eva, como de costume, sem nem perguntar, chega com a conta fechada e vai pondo os bebuns para correr.
Tá certíssima, a Eva. Alguém tem que manter a ordem no paraíso.
Conta e bar fechados, outra surpresa. Ao invés de chamar um uber já ali do bar, GRF resolveu me acompanhar em minha caminhada até minha casa e, de lá, chamar um uber. Só aí vi o quanto ele tava mamado! O quanto estava pra lá de Bagdá e Marrakesh. GRF cambaleava pelas calçadas, tropeçava no ar, um autêntico bêbado equilibrista. Geralmente, lá nos primórdios dos tempos, era eu que, após uma bebedeira com amigos, ficava daquele jeito, eu era o que dava "trabalho". Foi divertido ver outro em meu lugar.
GRF também mostrou um verdadeiro sobrevivente das ruas. Carregando seu livro de Nietzsche, a Gaia Ciência, GRF o levava com o dedão a pressionar a capa e os outros quatro dedos espalmados a segurá-lo pela contracapa. Entre os dedos e a contracapa, um canivetão aberto. Oriundo de regiões menos pacíficas da cidade, ele prefere não dar mole pro azar.
No caminho, passamos ainda pelo tradicionalíssimo Posto Triângulo e pegamos mais um latão de subzero pra cada um. Enfim, chegamos à porta do meu prédio. E quem disse que GRF conseguia chamar o tal do uber? Ainda que anárquico em tese, GRF teve que apelar para a família. Uma irmã veio socorrer-lhe e o levou para casa.
Eu, ainda, entornei mais um latão de subzero antes de me deitar.

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4 Comentários

  1. Adorei, mas resposta grande vira post (no Blogson)

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  2. Barbaridade. Essa foi a Parte I. Em breve, caso nenhuma nova pandemia ou pandemônio atinja essa cidade, tomaremos outras mais. E Jotabê não se sentiu representado pelo toddynho gourmet. E, me falha a memória. O que foi feito com tal toddynho? Ficou na Eva? Foi descartado?

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  3. Justamente por isso que o bar da Eva é bom, lá dá pra conversar à vontade, não tem barulho, não tem gritaria. Em casa, bebo com a minha esposa, assistindo a um filme, ou mesmo ouvindo uma musiquinha, mas bem baixo, é claro, musicões antigos, tipo bolerão, Nélson Gonçalves etc.
    Valeu pelo comentário.

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