Cerveja-Feira (51)

Se não com essas exatas palavras, mas certamente com o mesmo e castiço sentido, Anthony Bourdain disse certa vez : a obrigação de viver em um estado de felicidade constante é puro fascismo.
Como é possível que eu não me reconheça num sujeito desse? Anthony Bourdain foi dos mais reconhecidos e afamados nomes da gastronomia mundial, mas não restringiu seu campo de atuação a ela. Antes pelo contrário, fez de seu prestígio como chef de cozinha um aríete para arrombar outras portas, para dar vazão aos seus outros talentos. Bourdain foi também escritor de ficção e não-ficção, de roteiros de séries televisivas e até de uma graphic novel, Get Giro.
A mais significante das expressões de seus outros talentos foi o seu trabalho como repórter, documentarista. Um exemplo disso é o seu excelente programa Anthony Bourdain - Lugares Desconhecidos, pelo qual recebeu cinco prêmios Emmy. Em cada episódio, valendo-se de sua condição de chef famoso, Bourdain visitava lugares inusitados - Butão, Costa Rica, Cabul - com a premissa de conhecer a culinária e a gastronomia locais, mas a comida acabava por ser apenas o pano de fundo do propósito maior do programa. De comida, Bourdain entendia tudo, ou quase tudo. O que lhe interessava, de fato, era pesquisar sobre a história daquele país, sua política, suas desigualdades. Os episódios têm os mesmos níveis de produção e de roteiro que um documentário da BBC ou da Discovery.
Em cada episódio, Bourdain ia comendo e indo a fundo na história do lugar, na sua cultura, nos seus conflitos, nas suas contradições. Se fosse um lugar com uma guerra ou com uma ditadura em sua história recente, melhor ainda. Aí, é que Bourdain se esbaldava.
Bourdain olhava com ceticismo e pessimismo para a espécie humana, sem nenhuma esperança. Bourdain não ria; apenas sorria de canto de boca, sardônico. Bourdain não elogiava nem criticava, apenas constatava e reportava, sem juízo de valor algum. Bourdain não era gentil; respeitoso, sim, mas seco e cheio de arestas. Bourdain tinha humor, mas não era dado a gracinhas; suas tiradas e observações irônicas nada tinham de engraçadinhas, só de trágicas, de  uma tragédia tal que não nos dava outra opção que não sorrir. Ou enlouquecer.
Lugares Desconhecidos não dava receitas das comidas que Bourdain comia ao longo do episódio, não ensinava a cozinhar, não dava dicas de restaurantes para se visitar caso um dia o telespectador viajasse para tal lugar, não era Masterchef.
Bourdain não tinha frescuras e outras gourmetices. Comia qualquer coisa, sentava-se num caixote de madeira numa calçada e comia comida de rua.
Famoso, rico pra caralho, bonitão e consagrado em várias áreas. Bourdain, às vistas dos normais, tinha todos os motivos para viver em um estado de felicidade constante. Talvez para não se render ao fascismo do próprio talento, Bourdain era depressivo e amargo. Talvez para fugir ao fascismo do próprio talento, que não lhe dava motivos para ser infeliz, Bourdain se matou. Suicidou-se. Enforcou-se, aos 61 anos, em seu quarto de hotel em Paris, onde estava a gravar mais um episódio de Lugares Desconhecidos
Na noite de seu suicídio, Bourdain, antes, jantou em um restaurante onde "comeu, bebeu vinho, contou piadas e distribuiu sorrisos", segundo o chef Alexis Schonstein, dono do lugar e amigo de Bourdain. 
Era a despedida, era o canto do cisne.
Bourdain também era muito chegado a uma cerveja. Um dos melhores copos que já vi. Bebia durante o programa inteiro. Era uma beliscada num prato e uma talagada pra dentro do peito. Acho até que suas reportagens tinham a seguinte escala de prioridades : a cerveja do local, a história e, se desse tempo, a gastronomia.
E Bourdain também não tinha frescura em relação à cerveja que entornava, não tinha essa viadagem de cerveja artesanal, puro malte etc. Bourdain encarava a cerveja local do povão mesmo, cerveja barata. A cerveja comprada do ambulante na porta do estádio de futebol, cerveja do buteco pé-sujo.
Em visita ao Brasil, Bourdain encarou uma Schin!!!!! E num copo de plástico!!! Pããããta que o pariu!!!!! Bourdain era macho e cervejeiro das antigas.
É por essa e por outras que o Cerveja-Feira desta semana é dele, Anthony Bourdain, com toda honra e mérito.
A quem interessar possa, Lugares Desconhecidos com Anthony Bourdain é exibido pela CNN do Brasil, todos os domingos a partir das 18:35 h.

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2 Comentários

  1. Rapaz, se eu já tinha simpatia pelo Bourdain, seu texto sobre ele só fez com que ela aumentasse. Confesso não me lembrar ou não saber o motivo de sua morte (minha memória está se desintegrando), o que me deixou triste mesmo. Sabe o motivo? Quase me esquecia: parabéns pelo texto.

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    1. Ele se matou por enforcamento, mas o motivo? Vai saber, né? Li que a necrposia não revelou sinais de drogas entorpecentes, apenas de um antidepressivo que ele vinha tomando. A polícia francesa concluiu que foi um ato impulsivo. Alguns dias antes, ele teria dito a uma amiga : “Não existe ninguém com mais vontade de morrer do que eu”. Um outro amigo de Bourdain, um chef francês, arriscou dizer que Bourdain morreu por estar com o "coração partido", passava por sérios problemas no casamento.
      Mas como eu disse, vai saber, né?
      No programa de amanhã, às 18h45, ele estará em Hong Kong.

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