Cerveja-Feira (53)

Cerveja-feira em pleno domingão? Estás bêbado, Azarão?, muitos poderão supor e maledizer.
Primeiro que, com a definitiva extinção da minha profissão -  decretada pelo Novo Ensino Médio e pelo novo plano de carreira do professor impetrado pelo Doria Calcinha Apertada - , com a depressão mais aguda e insistente pela qual já passei (ainda estou passando) - que chega a me fazer quase pensar em ir a um psiquiatra e pedir uns tarjas pretas - e com a insônia que há quase duas semanas não me larga, para mim, todos os dias são iguais, segunda, quinta, terça, todos são igualmente miseráveis. Segundo que essa bagaça de blog é meu e eu publico no dia em que eu quiser.
Essa cerveja-feira surgiu em resposta a um comentário do Jotabê numa outra cerveja-feira : "Não sei se você chegou a pegar essa esquisitice (provavelmente não): as cervejarias engarrafavam suas cervejas indistintamente em garrafas de vidro marrom ou de vidro verde. Não sei era frescura de pinguço ou se a cor da garrafa realmente alterava o “buquê” da bebida. O que sei é que os apreciadores da breja só pediam “casco escuro”. Com isso, não passou muito tempo para que as bramosas da vida só fossem engarrafadas em garrafas de vidro marrom (Casco escuro). Hoje, a gourmetização das cervejas parece ter levado os fabricantes a utilizar ampolas de qualquer cor, mas imagino que os cervejeiros raiz talvez não aprovem essas modernidades".
Pois bem, Jotabê, não era frescura de pinguço, não. Os bebedores das antigas é que sabiam das coisas.
Vamos lá:
Antes, muito antes, do advento, e por que não dizer?, da hecatombe das cervejas gourmets, o máximo do refinamento permitido (e necessário) era exigir que sua loira gelada viesse acondicionada em garrafa de cor escura, marrom. Era a famosa Brahma casco escuro, o santo graal de todo bebum das antigas. Vasilhame pujante que, como não poderia deixar de ser, uma vez que estamos no Brasil, adquiriu também conotações fálicas e sexuais. O gênio do humor Costinha era um que lançava mão de tal metáfora sempre que contava uma piada em que havia um negão bem-dotado e abençoado por Deus.
Frescura de macho das antigas, exigir o casco escuro em detrimento do verde, ou do transparente? Porra nenhuma! Que macho das antigas não tem frescura. A exigência da velha guarda, ainda que ela não soubesse o motivo, mais que procedia, mais que se justificava. E se justifica até hoje.
Assim como o seu portador, o Anjo Lúcifer, a Luz traz imiscuídos em si o bálsamo e o ácido sulfúrico. A mesma luz que realça e potencializa as cores de uma fotografia, de uma tela, ou da decoração das fachadas e das paredes de prédios e residências, com o tempo, desbota-as, desintegra os seus pigmentos, destrói as suas almas. A mesma luz que permite a fotossíntese, processo responsável pela manutenção da vida no planeta, com o tempo, promove a destruição das células, o envelhecimento precoce dos tecidos, as mutações e os tumores.
Essa cruel, irônica e inescapável dualidade, que só pode mesmo ser obra de algum deus, não poupa nada nem ninguém. Abate-se sobre tudo e sobre todos. Flagela até a sacrossanta e ungida cerveja.
A mesma luz que permite que o lúpulo cresça, viceje e floresça também oxida e degrada os alfa-ácidos que lhe conferem o saboroso amargor, em especial a lupulina. A oxidação (reação com o oxigênio catalisada pela luz) dos alfa-ácidos gera o indesejável isohumulone, que produzirá um amargor impalatável e também num odor meio podre na cerveja. A essa combinação mefítica de gosto e odor  dá-se o nome de "skunky", gambá em inglês. Ou seja, tomar uma cerveja que sofreu oxidação é feito lamber um sovaco de gambá.
Por isso, a exigência do casco escuro pelos cervejeiros das antigas. A coloração âmbar do vidro é o melhor filtro que há para barrar a radiação UV nociva da luz, garantindo, dessa forma, a integridade dos bons alfa-ácidos do lúpulo e o bom entornar. Garrafas verdes ou transparentes não são capazes de bloquear grande parte da luz, o que sujeita seus conteúdos à degradação e ao skunky.
Como, então, algumas marcas mundialmente famosas e consagradas embalam suas cervejas em cascos mais claros, feito o verde da holandesa Heineken (uma das mais incensadas pelos inteligentinhos e cults) e o transparente da mexicana Corona?
Isso eu não sabia. Fui me informar, pois.
Segundo sites especializados, o uso da garrafa verde pela fabricante da Heineken é feito propositalmente para que a cerveja sofra uma espécie de "oxidação calculada", para que seja estragada, degradada em uma certa escala. A Heineken, pelo que pude entender, não se utiliza de lúpulos especiais nem os coloca em quantidades maiores do que as suas concorrentes de nicho para obter o seu amargor característico, que agrada a tantos - a mim, nunca enganou. Ela usa lúpulos comuns, em teores normais, põe na garrafa verde e deixa que a luz adicione um amargo a mais com a oxidação da lupulina, que adicione um skunky na cerveja. Ou seja, o boçal, o pernóstico que só toma Heineken e se jacta disso aos quatro ventos, na verdade, está a tomar cerveja estragada, está a dar beijo grego em cu de gambá. E a pagar mais caro por isso.
No caso da mexicana Corona, segundo os mesmos sites especializados, o envasamento em garrafa transparente só se faz possível porque a cervejaria se vale de uma cepa especial de lúpulo, criada em laboratório, geneticamente modificada, e que carrega em si um lúpulo não fotossensível. Lúpulo geneticamente modificado? No México? Eu acreditaria muito mais se me dissessem que o tal lúpulo imune à luz fora ofertado ao povo mexicano pelo deus asteca Tezcatlipoca.
Tenho, porém, um velho amigo que trabalhou como químico de uma cervejaria nacional de certo renome até meados da década de 2010, tendo se aposentado em 2015, 2016. Achei o número de seu telefone fixo numa velha agenda, torci para que ainda fosse o mesmo, bati um fio pra ele e ele atendeu.
Cumprimentamo-nos etc e blá-blá-blá e coloquei-lhe a questão. Disse-me que não chegava a duvidar do que eu lera sobre a Heineken e a Corona, mas que também não descartava que tudo fosse estratégia de marketing, que fossem aquelas histórias inventadas e espalhadas para alimentar a mística das marcas.
Disse-me que afirmar, de fato, só podia me afirmar a respeito do que vivera e conhecera durante os seus anos como químico cervejeiro, e que o procedimento padrão no caso das cervejas envasadas em cascos claros é, simplesmente, adicionar-lhes altas cargas de substâncias antioxidantes.
Aparentemente paradoxal, substâncias antioxidantes são moléculas que se oxidam facilmente, que apresentam alta afinidade pelo oxigênio. E é justamente isso que lhes confere o papel protetor que exercem sobre os produtos que se quer conservar, no caso os alfa-ácidos do lúpulo. O antioxidante vai catando tudo quanto é molécula de oxigênio que vê pela frente, antes que elas estraguem o lúpulo. O antioxidante é o guarda-costas que entra na linha de tiro do oxigênio e da luz. Uma espécie de boi de piranha químico. As moléculas de oxigênio o vão devorando enquanto o lúpulo passa incólume. Uma espécie de protetor solar.
Assim, no mais das vezes, garantiu-me, o que as cervejarias fazem é lambrecar a cerveja com algum Sundown e pronto, estão prontas para serem envasadas em garrafas de qualquer cor. Os antioxidantes usados, polifenóis, na maioria das vezes, para não alterar as propriedades da cerveja, detêm os 3I da água, são insípidos, inodoros e incolores. Inofensivos à saúde?, perguntei-lhe.
Vai saber... ele me respondeu.
Disse-me também o óbvio, que ainda não havia me ocorrido : na dúvida, tome a cerveja em lata, embalagem que, totalmente impenetrável à luz, não requer que seu conteúdo esteja recheado de antioxidantes.
Como há tempos não nos falávamos, a conversa ainda durou mais um tempo e derivou para outros assuntos. Tanto que marcamos para tomar uma gelada daqui a dois fins de semana.
De casco escuro, exigi.
Ei-lo, Lírio Mário da Costa, o afamado e infame Costinha, a desossar o peru e a tomar a sua Brahma casco escuro.

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3 Comentários

  1. Valeu pela explanação,caro Azarão.Vou usar para discutir(civilizadamente lógico) com um colega meu.Ele vai de Heineken ,eu de Brahma.Um argumento a mais.Quanto ao Sr. Lírio esse vídeo é sensacional. https://m.youtube.com/watch?v=ySlbpSHGO0Y
    O primeiro é o comercial oficial ,o segundo é o melhor making of da história.

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    1. Rapaz, você acha mesmo que eu não iria conhecer essa pérola das raspadinhas do Rio? E você reparou na direção do comercial? Ninguém mais ninguém menos que Cacá Diegues.

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  2. Realmente, estava com algum problema, que nem faço ideia do que fosse. Repostei e agora parece que está funcionando.

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