Pequeno Conto Noturno (89)

03:11 h. Pelas contas de Rubens, só há o suficiente para mais duas doses de rum na garrafa; o pirata e o papagaio lhe sorriem, zombeteiros. De uns tempos para cá, nessas horas mortas, que são as únicas em que ele se sente um pouco vivo, Rubens deu para se lembrar de G.
Nunca a conheceu por outro nome, que não G., pensa Rubens. Nunca se encontraram de fato. Não habitavam a mesma cidade, nem mesmo a mesma unidade da federação; uma distância oceânica entre eles. Não obstante, travaram intensa relação.
Rubens entorna a antepenúltima dose de rum e se lembra de que se "conheceram" via um comentário deixado por G. em um de seus textos espalhados por aí, em uma de suas garrafas de náufrago que, vez ou outra, ele lança no ciberoceano. Garrafas que volta e meia alguém desarrolha e lê o conteúdo. Mas não há como partir em resgate de Rubens, ele nunca informa as coordenadas de sua ilha. Escreve não para ser resgatado. Apenas para reafirmar sua condição de náufrago.
G., portanto, encontrou Rubens por Acaso. Isso, para aqueles que preferem acreditar na comodidade do Acaso, ao invés de se lançarem ao entendimento da matemática da existência, das peças que as probabilidades nos pregam muitas vezes.
Ao primeiro comentário da G., sucedeu-se um de Rubens. E muitos outros depois desses, de ambos. Trocaram e-mails. Passaram a se enviar textos mais extensos, relatos, declarações, desabafos. Mais íntimos, em muito pouco tempo.
Não raro, em suas tardes ociosas, recorda-se agora Rubens a ir pegar nova dose de rum, acontecia dele ir verificar alguma mensagem de G. em sua caixa de e-mail e de G. também estar lá, verificando a dela. Trocavam, então, mensagens em tempo real. Seus e-mails transformados em chats particulares e exclusivos.
G. contou a Rubens que, quando mais nova (G. ainda era muito nova então, 26 anos; Rubens a bater nos 50), era da pá virada, praticamente uma Geni, do Chico. Já uma jovem adulta conheceu aquele que tornara em seu marido. Sujeito não tão belo, mas recatado e do lar. Viu nele uma chance de redenção, um jeito de sossegar o facho e mudar de vida, deixar os tempos de devassidão para trás, tornar-se uma "mulher direita".
E, segundo ela, conseguira atingir o seu intento, aquietar o seu furor uterino. Por alguns anos, conseguira apaziguar os seus instintos. 
Até conhecer os textos de Rubens.
O contato com os textos dele trouxeram de volta os seus lascivos demônios interiores. Os textos de Rubens, contou ela, fizeram rachar e ruir o verniz de bom moça de G., romperam com as amarras da camisa de força autoimposta à sua sexualidade, ao seu pendor para a orgia.
Um, então, virou confessor pornô do outro. G. contou a Rubens experiências nunca dantes relatadas a ninguém, peripécias sexuais em que ela evitava até mesmo de pensar se perto de outras pessoas, no receio de haver um telepata entre elas.
Rubens, idem, escavou fundo o seu baú e o seu calabouço de podridão, também contou a G. todas as suas perversões e atrocidades cometidas em uma cama. 
Ou que gostaria de ter cometido.
Porque, com o passar do tempo, algumas das aventuras da G. pareciam ser inventadas, ou recicladas, uma maneira, talvez, de não deixar morrer o assunto entre eles, de continuar a excitar Rubens e a si própria. Rubens também passou a inventar e a reciclar algumas das suas.
Esgotados, possivelmente, o repertório individual de cada um, passaram a fantasiar situações entre os dois. Entre os dois e mais um. Entre os dois e mais outra. E mais outros. E mais outras. Promoviam, nas tardes em que calhava de se "encontrarem", verdadeiras bacanais vespertinas. G. masturbava-se sempre, gozava umas tantas vezes. Rubens, menos.
Olhando para a penúltima dose já pela metade no copo e tentando fazer ela render com pequenos goles, Rubens se lembra de quando G. começou a lhe enviar fotos. Inicialmente, de rosto. Uma mulher belíssima, a G. Certamente, a mais bela que  já se apaixonara por Rubens, a mulher mais linda da cidade, do Bukowski. Rubens só não gostava quando ela teimava em usar lentes de contato verdes. Depois, G. passou, numa sequência óbvia, a enviar fotos nuas para Rubens.
Peitos bem fornidos, com a turgidez própria da idade, aréolas grandes e castanhas. Peitos que, ela segredou-lhe, adorava que chupassem de forma violenta, que chegassem mesmo a tirar sangue deles, gozava com a dor.
Falsa magra, a G. Carnuda nos lugares certos. Carnes tonificadas em horas de exercícios físicos. Rubens surpreendera-se, no entanto, com a primeira foto da buceta da G. Imaginara-a, até aquele momento, um senhor dum bucetão. Nenhuma imaginação poderia ter sido mais falha: uma vulva diminuta, a de G., pequenos e grandes lábios também de reduzidas proporções, lábios que, em algumas fotos, ela afastava com os dedos para revelar a entrada da sua buceta a Rubens, uma entrada estreitíssima. Quem não a conhecesse jamais poderia supor o quanto de rola ela era capaz de aguentar; até mais de uma ao mesmo tempo, inclusive.
G. enviou dezenas de fotos ao longo da relação deles. Que durou o quê?, tenta precisar Rubens a secar o resto do rum no copo, meses?, dois ou três anos? Fotos enviadas mediante a garantia de que seriam todas deletadas ao encerrar da conversa entre eles naquele dia, imediatamente. Trato que Rubens, cavalheiristicamente, sempre honrou.
Rubens deve ter mandado umas duas ou três fotos de rosto para G. nesse tempo todo. E uma única da rola. Tirada a muito custo com uma velha máquina digital com zero pixels de resolução, tomada emprestada a Calil.
Então, de uma hora para outra, ou o que pareceu a Rubens ter sido de uma hora para outra - muito provavelmente ela há tempos planejava e tomava coragem para o seu sumiço -, G. abandonou Rubens. Sem nenhuma explicação num primeiro momento. E durante muito tempo. Simplesmente, comunicou-lhe que não mais se falariam. Rubens insistiu durante um tempo, enviou-lhe e-mails, vários e-mails, estranhando a decisão. Nenhum foi respondido.
Meses depois, talvez já se julgando mais protegida, mais imunizada contra o contágio por Rubens, G. mandou um e-mail e se explicou.
Precisara pular fora, contou. Aquela relação deles estava consumindo grande parte do seu tempo, de seu pensamento, de suas ações. Sentia que não estava cuidando, dando a necessária atenção às pessoas de sua vida real, que estava prevaricando de seus entes próximos e queridos. E que aquelas conversas clandestinas com Rubens não só tinham feito reaflorar como também estavam deixando sem controle o lado negro de sua Força, lado contra o qual tanto lutara para domesticar. Era a hora de jogá-lo de novo a uma masmorra.
Rubens entendeu, é claro. Espantou-se, no entanto. Não julgava que estivesse a causar mal a G. Pelo contrário, que as conversas entre eles, que as fantasias e desejos compartilhados, pudessem fazer um grande bem a ela, como faziam a ele. Julgava que fosse uma maneira dela extravasar todas as suas taras, fetiches e perversões sem, necessariamente, levá-las a cabo na prática, sem ter que pular a cerca, sem precisar colocar em risco, inclusive, sua própria integridade física. G. gostava de coisas bem pesadas. Rubens julgava que as lúdicas putarias trocadas entre eles pudessem mesmo ter um efeito terapêutico. Enganara-se, de novo. Antes, a envenenavam.
Rubens nunca teve nenhuma dificuldade para separar o mundo real do virtual, mesmo quando a realidade deste último muitas vezes se imponha. Rubens sempre soube separar perfeitamente as diversas realidades. Ele é um no seu ambiente de trabalho; outro, quando está com os amigos; outro, com as  mulheres que teve; outro, no mundo virtual. Nenhum influencia ou interfere com o outro. Rubens se diz, com um misto de ironia e orgulho, um esquizofrênico funcional. Mas se o mesmo não se dava com a G., só lhe restava aceitar.
Servindo-se da última dose de rum na garrafa, Rubens pensa que não deveria ter honrado tanto assim o acordo com G. de sempre apagar as fotos dela. Queria, agora, ter guardado uma foto de rosto ao menos. E não teria sido uma deslealdade da parte dele, caso tivesse reservado uma foto para si. Na verdade, nada teria sido mais justo.
G., é verdade, também não ficou com nenhum foto dele. Mas ficou com algo muito mais íntimo e pessoal : a caligrafia de Rubens. Os garranchos dele em suas carnes.
Num certo dia, G. pediu a ele que copiasse à mão o poema o Pássaro Azul, do Bukowski, o fotografasse e o enviasse para ela. G., então, imprimiu o manuscrito de Rubens, levou-o ao seu tatuador (ela tinha várias tatuagens), cuja rola por vezes chupara, e pediu que ele decalcasse à agulha a caligrafia de Rubens, a primeira estrofe do poema copiado por ele, na região de suas costelas, que a letra de Rubens ficasse eternamente a guarnecer um de seus flancos. O esquerdo ou o direito? Rubens não se lembra.
G. guardou em suas carnes o que há de mais particular e intrínseco para Rubens, a caligrafia dele, o rosto com o qual ele se apresenta para o mundo, o retrato 3x4 que, se ele pudesse, estamparia em seu R.G.
"Quero ficar no teu corpo feito tatuagem..."

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3 Comentários

  1. Penso que sua patroa não conhece o blog...

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    1. Rapaz, a minha esposa sabe do blog, sim. No começo, até tivemos uns problemas em relação a isso, mas já tem um bom tempo que, acredito, ela desistiu de dar uma passada por aqui; ou se passa, não comenta.
      A questão é : e a mulher do Rubens? , será que ela conhece o blog?
      O Rubens que se vire!!!

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  2. Legal que tenha gostado. Se tiver um tempinho, leia mais alguns da série e vá me dizendo o que acha.

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