Pequeno Conto Noturno (84)

Rubens, às 03:34 h da manhã, entornando a oitava dose de Guerra Fria (vodka + coca-cola, o melhor dos dois mundos), a ouvir "Gota d'água", "Mil Perdões", "Eu te Amo", "Atrás da Porta" e a invejar, sem querer mal, e a querer ser, sem deixar de ser-se, o Chico, reabastece a tigela de ração das gatas, duas senhorinhas não muito bem comportadas de 13 anos de idade, para não deixá-las em involuntário jejum caso durma até o sol a pino, embora saiba que seu sono nunca ultrapassa o horário do Globo Rural - não importa em que horas se deite, se renda, nem o quanto de álcool há em seu sangue a estofar feito plumas de ganso o seu travesseiro.
Na verdade, não teme acordar tarde e deixar as suas meninas ("olha as minhas meninas, as minhas  meninas, onde é que elas vão...") em dieta não consensual. Teme, ao mesmo tempo em que deseja, não acordar. Morrer. Na verdade, não quer suas confidentes ronronantes tenham de se alimentar de sua carne indigesta e amarga até que algum vizinho, incomodado pelo mau cheiro, acione a polícia, os bombeiros, o IML.
Anda pela sacada com o copo na mão. Apalpa e verifica a terra dos vasos do manjericão e da hortelã - ver se não está tão seca -, a terra dos vasos dos cactos e das suculentas - ver se não está tão molhada -, por fim, a dos vasos das samambaias e das orquídeas - calibrando, quando julga necessário, as umidades atlânticas propícias aos seus vicejares.
Senta-se, acaba com a dose, mastiga, tritura e engole as pequenas pedras de gelo residuais do fundo do copo. Fecha o caderno. Põe a tampa na caneta. Desiste de mais um poema que ficou sem desfecho, que ficou pela metade. Antigamente, as ideias lhe fluíam feito patinadores no gelo a estas horas da madrugada; hoje, são aleijados de muletas tentando andar em terreno de mangue. Mais uma ideia a não ser retomada e concluída. Mais um natimorto para o cemitério de suas gavetas.Vai à cozinha, prepara a nona Guerra Fria, volta à sacada ("passas em exposição, passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão..."). 
Pensa em Virna, em Yrina, em Selene. Desejaria tê-las ali com ele, naquele momento? Desejar? O que tem o Desejo a ver com isso? As pessoas, pensa Rubens a emborcar o copo, dão muita importância e prestam excessiva vassalagem ao Desejo. Superestimam-no e sujeitam-se a Ele como se não fosse possível não. Por que o sussurar do Desejo tem que, obrigatória e forçosamente, ser respondido com uma ação na busca e na captura de seu objeto? Não tem. Ter o Desejo não implica em ter de saciá-lo.
Há tempos que Rubens aprendeu a ignorar e dar as costas ao Desejo, esse ser andrógino de olhos dourados e irmão do Sonho e da Morte, a ouvir os Seus conselhos como aos de um louco.
Desejaria tê-las em lugar da placidez muda e do silêncio de placenta do envelhecer de suas gatas e do brotar de suas plantas? Ou tê-las somadas, em ruído dissonante, à inerte paisagem?
Não. Não mais. E ainda que desejasse, riria do Desejo. Diria ao Desejo que ele nada mais é que um Delírio.

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