Abençoai as Hienas

Jessé Florentino Santos, ou, simplesmente, Jessé, foi das mais belas vozes já surgidas em nossa hoje claudicante MPB, e também intérprete de eclético, singular e primoroso repertório - seja no aspecto das letras, seja no da melodia, arranjos, harmonia etc.
Jessé despontou como uma supernova no outrora lábaro estrelado de nossa música popular em 1980, mas eu só fui descobrir e admirar, de fato, o seu trabalho há cerca de 15 anos. Eu era muito menino à época de seu surgimento, tinha lá meus 12, 13 anos, e tanto a temática quanto as letras mais elaboradas das canções de Jessé ainda não diziam respeito ao meu pequeno mundo.
Aí, lá por 2003, 2004, eu, dando uma conferida nos últimos lançamentos de CDs piratas na banca de um camelô, dei de cara com uma coletânea do Jessé, "Jessé, o inesquecível". Comprei-a-a. Só, então, me dei conta da real dimensão do talento do precocemente finado Jessé, morto aos 40 anos em um acidente automobilístico. Em seguida, pesquisei e consegui recolher na internet oito do total dos 12 LPs gravados por ele; reuni-os em uma mídia de CD e até hoje, volta e meia, coloco-o para ouvir no meu velho toca-CDs.
Das suas canções, as mais conhecidas : Porto Solidão, Solidão de Amigos e Voa Liberdade.
Das minhas preferidas : Campo Minado e Paraíso das Hienas. Sobretudo a última.
De um brilhantismo ímpar e de uma ironia e de um sarcasmo lancinantes, a letra, escrita por Accyoli Neto, é um dos retratos mais fidedignos e, diga-se de passagem, mais corajosos já feitos do povo brasileiro, da patuleia tupiniquim, deste continental paraíso de hienas que é o Brasil.
Mas por que paraíso das hienas?
A hiena é um animal que ri. É também um animal que se alimenta de restos de caça rejeitados por outros animais e até mesmo, em tempos de carniças magras, de fezes alheias. Ri de quê, a hiena? A hiena é um animal que ri. É também um animal que acasala apenas uma vez ao ano. Uma única bimbadinha a cada 365 dias; isso se ela der sorte de não ser ano bissexto. Ri de quê, a hiena? Mas a hiena ri!
O brasileiro, igualmente, é um animal que ri. É também um animal que não tem educação, cultura e nem, em quase 60% das residências, saneamento básico; é um animal que toma água podre e caga num buraco no chão. Ri de quê, o brasileiro? O brasileiro é um animal que ri. É também um animal analfabeto, descamisado, descalço, desdentado e feito em gado de corte por políticos que ele insiste em eleger e reeleger. Ri de quê, o brasileiro? Mas o brasileiro ri. E como ri, o brasileiro. É povo festeiro, o brasileiro. Longe de ser trabalhador e cumpridor de seus deveres, como é festeiro, o brasileiro. Autodeclarado dos povos mais felizes do mundo, o brasileiro. Em um pesquisa de 2016 feita com 158 países do mundo pela Sustainable Development Solutions Network (SDSN), entidade que se propõe a "medir" a felicidade dos povos e divulgar a lista dos mais felizes, o Brasil ocupou a 16ª posição; só ficando atrás de países como Suíça, Dinamarca, Holanda, Suécia, Islândia, Noruega e outros assemelhados, nações felizes com razão, felizes por justa causa e por merecimento, pois muito estudaram e se disciplinaram para atingirem o patamar de qualidade de vida em que hoje se encontram. Ri de quê, o brasileiro?
Alguns versos da letra de "Paraíso das Hienas" são de uma pungência que beira a crueldade, que beira chutar cachorro morto. Tanto mais cruéis por ser, de fato, o brasileiro, cachorro morto. "Abençoai as hienas, principalmente as morenas, tricampeãs mundiais" - referindo-se ao tri de futebol de 1970; "Abençoai as hienas, principalmente as "da Silva", campeãs de carnavais"; "Novena não paga ao homem da venda, não adianta nada, não enche barriga, subir de joelhos as escadarias".
A música é da década de 1980, e o brasileiro continua rindo, idolatrando jogadores de futebol, vibrando à passagem das escolas de samba e rezando e subindo de joelhos as escadarias.
Paraíso das Hienas 
(Accyoli Neto)
 Abençoai as hienas
Principalmente as morenas
Tricampeãs mundiais
Pois desse lado do muro
O jogo é tão duro, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Oração não voga quando não há vaga
Coração não roga quando só há raiva
E a roupa do corpo três vezes ao dia
Novena não paga ao homem da venda
Não adianta nada, não enche barriga
Subir de joelhos as escadarias

Abençoai as hienas
Principalmente as "da Silva"
Campeãs de carnavais
Pois desse lado do beco
O olhar é tão seco, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)
Oração não voga quando não há vaga
Coração não roga quando só há raiva
E a roupa do corpo três vezes ao dia
Novena não paga ao homem da venda
Não adianta nada, não enche barriga
Subir de joelhos as escadarias

Abençoai as hienas
Principalmente as morenas
Tricampeãs mundiais
Pois desse lado do muro
O jogo é tão duro, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)
 
Para ouvir a canção, é só clicar aqui, no meu poderoso e histriônico MARRETÃO.
em tempo : o vídeo do link é praticamente uma raridade, Jessé se apresentando ao vivo no extinto programa Perdidos na Noite, de quando o Faustão ainda era bom.

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