Vida, Minha Vida, Olha o Que é Que Eu Fiz...

Gosto de ouvir meus ansiolíticos velhos LPs do começo ao fim,
Da faixa 1 a 12, sem paradas,
Sem tirar a agulha de dentro.
Mas quem tem, hoje, o tempo dos velhos gramofones, dos velhos festivais?
Deixo-os, os LPs, então,
Com suas pisadas terras de massapé preto sulcadas,
Mas sem receberem semeadura,
Minifúndios improdutivos e calados.
Encalabouço-os em ordem alfabética em armários escuros,
E o diamante que lhes dá voz
Em cofre cuja chave me caiu do bolso sempre furado em alguma de minhas andanças e cuja combinação me esqueci ao fugir de alguma tempestade que se anunciou mas não se fez.

Gosto de assistir ao meus colagogos filmes antigos do começo ao fim,
Do título aos créditos finais,
Sem intervalo nem pra banheiro
Nem pra pipoca.
Mas quem tem, hoje, o tempo das velhas férias escolares de janeiro, das velhas Sessões da Tarde?
Deixo-as, as minhas velhas fitas VHS, então,
Em gavetões arqueológicos,
Em mausoléus de animação suspensa,
Adormecidas e anestesiadas em naftalina.
O controle remoto, enveneno com o vazamento tóxico das pilhas de mercúrio,
O videocassete, algemo em eterno estado de pausa, de coma induzido.

Gosto de ler meus tônicos e fortificantes livros do começo ao fim,
De uma só sentada,
De uma só madrugada,
Sem ter de lembrar da página em que parei,
Sem ter que lhes enfiar um marca-livros goela adentro.
Mas quem tem, hoje, o tempo das cadeiras colocadas à noite às calçadas, o tempo de telescópio de observar a dança dos girinos das estrelas?
Deixo-os, os livros, então,
Feito troféus de caça nas estantes de minhas paredes
- cabeças de leões, de antílopes, de gnus e de pássaros Dodôs empalhadas -,
Feito tiras de carne abandonadas de sol a sal no varal,
Santos mumificados em altares esquecidos.

Dizia-me, a Vida,
Nos tempos em que eu tinha tempo de tomar com ela um café de coador com chocolate branco,
Que gostava muito de me ouvir do começo ao fim,
Minha voz monocórdica,
Meus circunlóquios em 33 RPM,
Me ouvir da premissa ao veredicto.
Não entrecortado feito hoje, ela reclama.
Não fatiado entre ela e o trabalho, e a faxina, e o supermercado, e o banco, e o cansaço.
Não quer mais ser para mim
Um lazer de meus raros ócios,
Uma revista de palavras cruzadas que levo para o banheiro nos rápidos momentos de alívio.
Põe-me, então, a Vida
Em seus calabouços de 50 anos de profundidade
Em seus cofres de cuja combinação já se esqueceu.

Dizia-me, a Vida,
Nos tempos em que eu tinha tempo de me sentar com ela à esquina de um buteco e tomar cerveja com porção de lambari frito,
Que apreciava muito me assistir do começo ao fim,
Do conforto de uma sala escura,
Do afundar em uma poltrona acolchoada,
Do luxo de uma tarde de chuva mansa.
Gostava de meus enredos, dos meus suspenses, de minhas poucas cenas de ação, de minhas edições e enquadramentos,
Mas não picado e vendido a quilo feito hoje, ela reclama.
Não esquartejado por intervalos comerciais,
Reuniões, convocações, viagens de negócios.
Não quer mais ser para mim
A amante que se leva a motel barato na hora do almoço.
Põe-me, então, a Vida,
Feito velhos filmes de rolo e películas em super 8,
Em suas gavetas frigoríficas,
Em seus mausoléus de formol.

Dizia-me, a Vida,
Nos tempos em que eu tinha tempo de tirar breves cochilos com ela nos sofás silenciosos de desertas bibliotecas,
Que adorava me ler do começo ao fim,
À luz da Lua, à luz de velas,
Lentamente, 
Com seus óculos de leitura de armação de casco de tartaruga,
Minhas frases, minhas vírgulas duvidosas, meus capítulos curtos
(ficava de mamilos eriçados só de tocar no meu papel enrugado e amarelado pelo tempo, confessou-me um dia),
Minhas entrelinhas, do prefácio ao epílogo.
Mas não fracionado em apressados parágrafos feito hoje, ela reclama.
Não se tiver que me ler feito twitters ou mensagens de texto,
Não se em minha versão ausente e distante baixada em PDF.
Não quer mais, a Vida,
A mim como seu biógrafo fantasma
Nem a ela mesma, minha musa bissexta.
Põe, então, a Vida,
A minha cabeça empalhada e envernizada
(oca de tudo)
Sobre a lareira de sua sala de estar,
Põe-me em estátua de feições agônicas de gesso e de sal
Em um lugar de honra de seu relicário de extintas mitologias.

em tempo : o título é um verso da belíssima canção Vida, de Chico Buarque.

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3 Comentários

  1. Eu de todo o coração, fiquei com uma inveja enorme desse texto. E digo com a maior convicção que ele poderia ser até em prosa que ainda assim seria de uma precisão poética cirúrgica. Do caralho.
    PS: você e JB ficam aí reclamando de falta de assunto, merecem os dois é uma boa coça. Felizmente eu não posso pro causa do Estatuto do Idoso.
    "J"

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    Respostas
    1. E não é que quase que ele saiu em prosa, mesmo? A ideia original me ocorreu na forma de um texto, mas como ando com uma puta duma preguiça e com um desânimo desgraçado de escrever longos textos, pois eu acabo, inevitavelmente, querendo estender e esmiuçar demais cada tópico, resolvi ser mais econômico e condensar na forma de um "poema".
      Sei lá, de repente, tem velhinho que gosta de tomar uns tapas... vai saber...

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    2. Não dá ideia, agora fiquei imaginando aquelas imagens sadomasoquistas entre idosos. Realiza só realiza
      "J"

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