O Dia da Marmota

Ela acorda e é sempre o mesmo dia.
05:00 em vermelho no mostrador do rádio relógio. Levanta pelo mesmo lado da cama, o mesmo pé a primeiro tocar o chão. Os mesmos minutos sentada ao vaso sanitário, os mesmos tantos mililitros de urina, os mesmos tantos centímetros de papel higiênico folha dupla.
Coa o café - o primeiro abraço quente de seu dia, muitas vezes o único -, sempre o mesmo gosto, e não bom, apenas necessário, burocrático; testou várias marcas, das mais baratas às mais caras, vários tipos de filtros, e qualquer café lhe parece melhor que o seu - o do consultório médico, o do seu local de trabalho, o quase sempre frio servido pelas promotoras nos corredores dos supermercados.
Abastece de ração as suas duas gatas e asseia a caixa de areia delas. Elas ronronam e se esfregam em suas pernas em sinal de gratidão - as gatas ainda lhe são gratas -, ou à guisa de pequenos e diários subornos emocionais, de tácitas propinas afetuosas para que ela continue a tratá-las e a mantê-las em vida mansa; animais domesticados aprendem e apreendem muito do comportamento humano.
Senta-se por dez, quinze minutos em seu sofá, como um detento a desfrutar de seu pouco tempo de banho de sol; toma o café, come um pão com qualquer coisa e uma fruta qualquer, assiste a algum resto, meio ou início de um programa ou de um matutino jornalístico na TV.
Acorda marido e filho. Escova os dentes. Desce com o lixo - às segundas, quartas e sextas-feiras - e sai.
Leciona para paredes descascadas, tetos mofados, janelas com vidros quebrados e esquadrias oxidadas, quadros negros desertos, dunas salgadas e estéreis de pó de giz, para rebanho muito e mouco.
Encerra o expediente vão, pega o filho à saída da escola, volta para casa. Almoça já a cozinhar a janta, a pôr a roupa na máquina de lavar, a ajudar na tarefa do filho. Almoça não arroz, feijão, salada e bife : ingere combustível para rodar até o fim de seu dia - sentirá um carro diferente paladar ou regozijo se abastecido com gasolina, etanol, diesel ou GNV?
Levar filho na natação, no inglês, no judô. Acha o professor de judô até interessante, desperta certos sentidos dela, no entanto, é japonês e ela não pretende se arriscar por pouca coisa, sonha acordada com o dia que o filho, quem sabe?, resolva trocar o judô pela capoeira.
Trânsito das 18 h, janta do filho, chegada do marido, banho, algum filme ou seriado na TV, conversas sobre amenidades e contas a pagar, preparativos para dormir, para seguir em frente enquanto toda a sua vida atrasa.
E ainda que seu sorriso seja obra conjunta de duas visitas anuais ao ortodentista e de meia garrafa diária de vodka, ela sorri. Para todos os efeitos (especiais, de 3D), ela é feliz e realizada.
Até goza, vez ou outra. Quando o marido dorme antes dela.

em tempo : o título da postagem faz referência ao filme Groundhog Day, traduzido por aqui para O Feitiço do Tempo, com o ranzinza Bill Murray e a belíssima Andie MacDowell. 

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2 Comentários

  1. Parece que você fez uma leitura feminina da própria história. Ficou bacana.

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  2. Texto sobre a mulher do Marreta.

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