Em Rock Balboa (2006), o último filme da série de seis sobre o boxeador consagrado e imortalizado por Sylvester Stallone - ou melhor, sobre o boxeador que consagrou e imortalizou Sylvester Stallone -, deparamo-nos com o garanhão italiano aposentado há décadas dos ringues, proprietário de uma cantina em que serve massas e antigas histórias de boxe aos seus clientes e a bater na casa dos sessenta anos.
Um encadear de contingências (quem quiser detalhes que veja o filme) põe Balboa frente a uma nova chance - a última - de voltar aos ringues. Contra o jovem campeão Mason Dixie, um campeão legítimo, saído das ruas e tudo o mais, porém, sem muito carisma e, principalmente, sem adversários à altura que legitimem a posse de seus cinturões em campo de batalha, que lhe proporcionem um batismo de suor, sangue, supercílios desbeiçados, maxilares triturados e retinas descoladas, o que torna suas lutas desinteressantes e as coloca sob suspeita de serem arranjadas, marmelada pura.
Rocky aceita o convite, volta a treinar - aquela coisa de subir escadaria, de socar quarto traseiro de boi em gélidos frigoríficos, com Eye of the Tiger a tocar ao fundo -, e faz luta das mais decentes e combativas contra o jovem Dixie, dá mais trabalho ao jovem detentor do título mundial dos pesos-pesados que todos os adversários anteriores dele, juntos.
Balboa aguenta firme os doze rounds, como cada um fosse uma façanha de Hércules, beija, faz Dixie beijar a lona por várias vezes e perde por pontos, em decisão apertada dos juízes. O campeão, incrédulo ao começo do combate e surpreendido ao seu final, agradece a Balboa pela luta de macho e recebe a gratidão de Balboa pela chance do último combate, de um encerrar digno de carreira, de poder sepultar de vez fantasmas do passado e outras viadagens e salamaleques só permitidas aos verdadeiros machos.
Lembro-me que, à época do lançamento de Rocky Balboa, a crítica bateu pesado em Stallone, mais que Apolo, o Doutrinador, Clubber Lang e Ivan Drago. Mesmo para um filme de ficção, Stallone, desta feita, exagerara, um sessentão voltar aos ringues e encarar de igual para igual um jovem campeão no auge da forma, na ponta dos cascos, era por demais absurdo. Até para Hollywood.
Ou melhor, só para Hollywood, só para o cinema, que é a cópia borrada, sem graça, formatada e politicamente correta da vida. Um sexagenário enfrentar um jovem só não é plausível na ficção e na sétima arte, terreno em que a lógica e a coerência são necesssárias. A vida real não se pauta por nenhuma espécie de lógica, manda a coerência às favas. A arte tem que ter manter uma coerência, a vida não.
Há duas semanas, a vida imitou a arte, que é vulto formado em espelho fosco da vida. A sexagenária vida desafiou a jovem arte, subiu com ela ao ringue. E lhe deu um belo dum cacete. Feito os personagens de A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, o Balboa de Stallone fendeu a tênue barreira dimensional entre a telona do cinema e a realidade e tomou corpo entre nós. Na figura única, tresloucada, psicótica e grotesca de Mickey Rourke.
Aos 62 anos de idade, vinte anos depois de ter abandonado os ringues pela segunda vez, o ex-galã de 9 e 1/2 Semanas de Amor (um dos filmes mais bregas de todos os tempos), o cara que lambeu Kim Basinger de cabo a rabo (principalmente o rabo), voltou a lutar, enfrentou o jovem Elliot Seymour, de 29 anos, e derrotou-o. Por nocaute, no segundo round. Numa clássica porrada no fígado.
Derrotou! E não simplesmente, feito Balboa, aguentou o castigo do jovem adversário e conseguiu chegar capengando ao último assalto, o que já seria chamado, pelos politicamente corretos de plantão, de "vitória moral". Rourke não está nem aí para vitória moral, nem para a moral.
Tudo bem que Elliot Seymour não é nenhum virtuose dos ringues, nenhum campeão mundial. O jovem batido por Rourke ocupa a 265ª posição no ranking do boxe mundial e só venceu uma de suas dez lutas como profissional, ou seja, é um zé mané, um pau de bosta.
Mas até aí, se Elliot Seymour nunca foi um Mason Dixie, Mickey Rourke, muito menos, foi um Rocky Balboa. Ainda que Rourke colecione apenas vitórias e empates em suas carreiras amadora e profissional - 13 vitórias em 13 lutas como amador e sete vitórias e dois empates como profissional - sempre atuou nos baixos escalões do boxe, nunca foi do primeiro time, nunca subiu ao ringue escoltado por Don King. De semelhantes níveis técnicos, portanto, Seymor, com trinta e três anos a menos que Rourke, deveria tê-lo estraçalhado.
Deveria... Mas acontece que Rourke é Rourke. É daqueles sujeitos cujo espírito parece ter reencarnado em época errada. Rourke se sentiria muito mais à vontade num campo de chachina viking, decapitando o inimigo com um pesado machado e depois indo a uma taverna, descansar, beber e dançar junto à fogueira com uma ruiva gostosa e carnuda. Rourke sentiria-se muito mais vivo e satisfeito numa planície do Pleistoceno, a rachar crânios dos recém-evoluídos Homo Sapiens com um porrete feito de um fêmur de mamute.
Mickey Rourke não tem paciência para civilidades. É o cara que prefere sangrar e se quebrar num ringue do que, a exemplos, enfrentar uma fila de banco ou de mercado, esperar em casa pelo encanador, renovar a carteira de motorista, discutir um problema conjugal e outros inimigos imateriais, que ele não pode esmagar.
Quando as aporrinhações da civilização começam a lhe pesar, Rourke volta aos ringues. Onde, apanhando ou batendo, o que tem que fazer é claro e objetivo, de solução rápida e definitiva, e o inimigo, reconhecível e palpável.
Abaixo, Mickey Rourke, ao fim da luta com Elliot Seymour, sendo declarado vencedor pelo árbitro da contenda. Sessenta e dois anos de idade, corpinho de 60 e cara de 113 anos.
Quantos aos filmes de Mickey Rourke, não percam tempo com 9 1/2 Semanas de Amor, um soft porn. Nas telas, Rourke é encontrado em sua melhor forma em filmes como O Selvagem da Motocicleta, Coração Satânico, Barfly (em que interpreta Henry Chinaski, um alter ego do beberrão Bukowski), Harley Davidson e Marlboro Man, Homeboy, Johnny Handsome, O Lutador e Sin City.
4 Comentários
Ah, mas esqueceu de "Os mercenários" e "Orquídea Selvagem".
ResponderExcluirNão esqueci, não. É que esses são ruins pra caralho!!! E a gelada tá marcada pra quarta. Pensei em dois lugares.
ExcluirA luta foi mais um daqueles contos de Hollywood. Falsa. Incrível um cético do seu quilate não perceber. Deve ser a idade.
ResponderExcluirSe tivesse sido realizada em Los Angeles, Las Vegas etc, eu até concordaria com você. Mas foi na Rússia, terra de machos, de cossacos.
ExcluirE não sou cético. Sou acético. Ácido acético!