Pequeno Conto Noturno (38)

O interfone do apartamento de Rubens : três toques curtos, três toques longos e mais três toques curtos.
Fazia uns três, talvez quase quatro anos que Rubens não via Calil, três ou quatro nada saudosos anos, que se registre.
Calil passa a maior parte do tempo ou preso por não pagar pensão alimentícia, ou foragido para não ir preso.
Rubens ficara sabendo por Bruna que Calil arrumara uma mulher boa, honesta, provavelmente doida, e nela se encostara. Uma buceta que provém sustento. Rubens nunca topara com uma dessa. Nunca procurara, é verdade, mas não é algo pelo qual se procure, é questão de talento, ou de sorte. Nunca acharia uma dessa, portanto, conclui Rubens.
A tal mulher havia posto, segundo as más linguas, Calil nos eixos. Conseguira-lhe uma ocupação de meio período, reduzira-lhe a bebida, fizera com que arrumasse os cacos de dentes, acabasse o segundo grau, tirasse carteira de habilitação.
E até - e aqui mesmo os mais maledicentes tinham dúvidas - levara-o a frequentar uma igreja, dessas evangélicas que aceitam qualquer traste em seus bancos. Afinal, Cristo não faz distinção de qual seja a origem da grana que lhe cai nas furadas mãos. Ou que lhe cai das mãos, uma vez que furadas. Cai para as  mãos, fortes tenazes, de pastores e padres.
Para Rubens, contudo, a conversão religiosa de Calil era a parte mais fácil de acreditar. Nada mais plausivel, inclusive. Rubens podia facilmente visualizar Calil em meio ao rebanho de ignorantes, louvando e dando graças ao Senhor, não verdadeiramente convertido a Cristo, muito menos a ignorante, que idiota Calil nunca fora. Só safado, crápula, ordinário, mandrião; adjetivos, para Rubens, muito mais meritórios do que "religioso".
Rubens bem podia imaginar Calil a mimetizar os crentes, se fazendo passar por um deles por conveniência, por ter achado uma louca que lhe dera guarida. Feito um bicho cansado e/ou ferido, que necessita de um tempo para se remendar. Feridas cicatrizadas, asas costuradas, Calil voltaria a aprontar das suas, mais cedo ou mais tarde. 
Poderia ter sido mais tarde, pensa Rubens. E o toque no interfone se repete : ... --- ..., três curtos, três longos, três curtos. Código morse para S.O.S, que, por alguma razão, ou mais provavelmente pela falta de uma, Calil acha de uma tremenda graça, de uma inigualável espirituosidade (não confundir com espiritualidade), Calil morre de rir. E talvez tivesse até um certo charme, os toques. Não houvesse Calil por detrás deles. 
Não havia dúvidas. Calil cagara em tudo, de novo. O tempo de reclusão/incubação/restauração dele acabara de acabar. S.O.S,  pensa Rubens. Calil está de volta. E não há a quem recorrer, ou para onde fugir. Nunca houve. Calil está de volta. Protejam suas carteiras e, sobretudo, suas garrafas de bebidas.
- Rubão, cachorro velho, tempo pra caralho, hein?!?!
- Eu ainda suportaria a saudade por mais algum tempo, Calil. Mais umas duas ou três décadas.
Calil gargalha, uma gargalhada que parece um porre de quem há muito está abstêmio, gargalhada que só os solitários conseguem dar. O homem acompanhado ri, sorri, consegue ser feliz, consegue sim, mas gargalhar...
- Vou tomar isso como um abraço de boas-vindas. E ó... - Calil levanta o braço e mostra algo inédito, um fardo de latas de cerveja, e dos grandes, dos com 18 latas, exibe-o como um pescador a exibir um peixe grande.
- Se eu tivesse uma máquina fotográfica, um celular, ou qualquer outra dessas merdas, eu ia registrar este fato histórico : o dia em que Calil levou bebida para a casa de alguém.
- 'Cê ficou sabendo, né, Rubão? - Calil abre duas latas, dá uma para Rubens - Arrumei uma dona aí, me dediquei três anos e tanto a ela, e hoje à tarde a vaca me pôs pra fora de casa, pra correr.
- Assim, do nada? 
- Me pôs pra fora sem nada - Calil mal ouvindo a pergunta de Rubens -, sem porra nenhuma. Mas tenho meu orgulho de homem, bati o pé, abri a geladeira e disse pra vaca : o último fardo de cerveja eu vou levar, vou tomar com meu amigo Rubão. Era ponto de honra, cara.
Rubens e Calil entornam, acabam com as duas primeiras. Com a honra de um homem não se mexe, concorda Rubens. Mesmo que ela seja medida em fardos de cerveja, como é o caso de Calil, talvez dele próprio.
- Conheci a vaca depois da última noite que tive aqui, naquela vez que você me deu um murro no estômago e me pôs pra fora.
- Eu não pus ninguém pra fora. Acontece que, quando você acordou da porrada, uma das mais prazerosas que já dei, não tinha mais bebida, e, para você, não ter bebida de graça para parasitar é desagravo muito maior que um murro nas fuças.
- Hoje eu trouxe, não trouxe? - Calil abrindo mais duas latas.
- Eu saí daqui meio grogue, com sono, barriga doendo, vontade de cagar, e fui me arrastando por aí. Eu nem tinha visto a vaca, quando passei por ela. Só ouvi a voz : "parece que o senhor anda muito precisado de Jesus".
- Às quatro da manhã, Calil? Eu te dei um murro no estômago, não na cabeça.
- É, eu também achei que tava ouvindo coisas, tanto que só olhei pra trás quando ela repetiu que eu tava precisando de Jesus.
Mais duas latas.
- Era uma igreja pequena, Rubão, acho que ela tava num tipo de plantão, uma vigília lá deles, acho que na verdade tavam  fisgando desgraçados que passavam por ali naquelas altas da matina.
- Era boa?
- Pois é, tinha aquele cabelão de crente, aquele saião, aquela blusa abotoada até o pescoço, mas tinha uma boa cara, e dava para adivinhar uns bons peitos embaixo daqueles panos todos, e uma bunda ajeitada. Me chamou para conhecer a igreja.
- A mosca convidando a aranha pra entrar... - Rubens, finalizando outra lata.
- Me pôs sentado numa cadeira de plástico, me deu um copo de água ungida, para de rir, porra, eu tô falando sério, e foi falando o que Jesus poderia fazer por mim, falou pra caralho.
- Te pegou pra Cristo - Rubens mal conseguindo conter as risadas.
- Não vai parar mesmo de rir, né, caralho? Aí eu decidi que se Jesus pudesse me tirar por um tempo das ruas, se eu pudesse ficar de molho, sossegado, sendo bem tratado e bem alimentado e, de quebra, me aninhar numa boa buceta, quente e cabeluda, crente não raspa a buça, 'cê sabia, né, Rubão?, a resposta era sim : eu tava muito precisado de Jesus, ansiava por Jesus no meu coração.
Rubens, finalmente, consegue parar de rir. De certa forma, pensa Rubens, era bom ter Calil de volta, nem que fosse de vez em quando, era de muita utilidade para reforçar sua descrença no ser humano.
- E qualquer um que olhasse pra ela, Rubão, percebia que ela precisava muito de uma rola.
- E você virou um gigolozão?
- Nada disso, meu. Me esforcei pra caralho pra ser um companheiro decente. Virei um homem do lar.
- Pra fazer por merecer a ração e a casinha, né? Abre mais duas aí.
Os dois dão longos e sôfregos goles. Como só os que não têm ninguém por eles e nem são por ninguém conseguem dar.
- Mas, Calil, já que estava vivendo às custas da crente, podia pelo menos comprar uma cerveja melhorzinha, porra.
- Essa é importada, seu viado.
- De onde, México, Bolívia, Suriname?
- E vivendo às custas da evacangélica é a puta que te pariu! Ela saía cedo e eu não ficava só coçando o saco e tocando punheta feito você, não. Eu cuidava de tudo na casa. Faxina, lavava banheiro, lavava e passava roupa, aprendi a cozinhar, fazia feira, mercado, farmácia, até absorvente eu comprava pra ela, ia pagar as contas no banco, e à noite sempre tinha aquela pistolada garantida. Tá pensando o quê, porra? Tem noção de quanto custa uma empregada doméstica misturada com office boy e garoto de programa? Eu saí foi barato pra evacangélica.
- Tadinho... Acho que você tem que entrar na justiça do trabalho contra ela. Ou contra Jesus?
- Vá tomar no cu! Mas quer saber? Eu devia processar a vaca, mesmo. Tinha metida todo dia, Rubão, às vezes até duas. Sabe quanto isso dá em mais de três anos? E 'cê sabe que a gente nasce com um número contado de ereções, né? Uns mais, outros menos, ninguém sabe com quantas nasce, mas que é um tanto limitado, é.
Lá vinha Calil com suas teorias malucas, se lembra Rubens, ele tinha um baú cheio delas.
- E acabou, acabou, meu amigo. Não levanta mais. Nem com remédio nem com buceta nova. Devo ter gasto mais de mil com a evacangélica.
- E em que tribunal pretende processar a vaca? Na Vara de Pequenas Varas?
- Vai brincando, 'cê sabe que nesse quesito Deus me abençoou...
- Jesus!
- Vai a merda! A encrenca aqui é grande, Rubão. E quer saber? Eu cuidei melhor da vaca que você das suas biscates.
- Cuidou do seu sustento.
- Sabe qual o teu problema, Rubão?
- No momento, você e essa cerveja horrível.
- É que você não liga pra nada, cara. Nada te interessa de verdade. Tem muito padre que fez voto de pobreza que precisa de mais pra viver do que você, qualquer merda tá de bom tamanho pra você.
- Eu tô tomando a cerveja que você trouxe, não tô?
- Eu cuidei dos meus interesses da forma que eu sabia, mais fácil, e daí? Todo mundo faz isso. Você é que não tem nenhum interesse, nenhuma motivação pra ser canalha, e fica dando uma de superior.
Talvez remoa mais tarde sobre isso, pensa Rubens, talvez, e bem mais tarde.
- Abre mais duas, Calil.
- Já foi metade da cerveja, Rubens. Tem mais aí?
- E ela era boa de fodelança?
- Boa pra caralho, cara. Essas crentes seguram a buceta a vida inteira, 'cê não pode imaginar a sede com que vão ao pote quando encontram o pinto certo.
Rubens gargalha de novo, com gosto, chega a cuspir longe um tanto de cerveja.
- O pinto certo? Existe isso? E logo o seu?
- Pode rir, bichona velha, mas aposto que você nunca ouviu das suas biscates o que a evacangélica falava do meu pau.
- E o que ela dizia? - Rubens entrecortando sua fala com as risadas que não conseguia conter.
- Dizia que eu tenho um pinto abençoado!
Rubens se dobra ao meio, enverga no sofá de tanto rir, nem são mais gargalhadas, são estertores de riso, doem-lhe as costelas e o baço.
- Verdade, cara, um pinto abençoado. Ela dava graças por ele todos os dias em suas orações. Ela chupava meu pinto e ficava recitando salmos.
- Mentira, seu fudido. Para, porra! Para! Vou acabar me mijando todo com essa merda que você trouxe. Abre mais duas, vai.
- Verdade, Rubão. Chupava e recitava salmos, um monte deles, o que eu mais gostava, até decorei, era aquele : "ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam". E eu consolava mesmo, Rubão. Tá com inveja, né, seu puto? Fica aí com suas mulheres "cabeças", neuróticas, esquizofrênicas, tarjas pretas, analisadas e o escambau, mas nunca pegou uma crentinha de jeito.
- Muita inveja, Calil, muita inveja. Então, ela era da pá virada, topava tudo, fez de tudo com ela.
- Menos o girassol, Rubão, esse ela não liberava... o butãozinho, sabe?
- Sei. E os peitos? Você falou que quando viu ela pela primeira vez adivinhou uns bons peitos debaixo da blusa.
- Durinhos, Rubão. Muito pouco usados. Nunca antes mamados, tocados, sim. Mamados, chupados, amassados, mascados, não. Esporrados, então, nem em pensamento, antes do Calilzão aqui.
- Ela gostava de um tratamento hidrante nos peitos?
- Adorava. Dizia que eu ungia os seios dela.
- Pãããta que o pariu! 'Cê tá inventando essa merda toda.
- Não tô, não.
- Eram grandes?
- Médios. Podiam ser um pouco maiores. E foi aí que eu "mifu".
- Sifu? Sei... vai dizer que foi mamar em outra crente mais peituda, numa irmã com os peitos abençoados?
- Vai te fuder. A coisa é séria.
Calil abre mais duas antes de continuar.
- Coisa de um ano e pouco atrás, ela apareceu com câncer de mama.
- Ela teve câncer de mama e você que "sifu"? Quanta sensibilidade, Calil.
- Vai chupar pinto, Rubão. Tá me tomando por quem? Nada disso, cara. Fiquei do lado dela o tempo todo. Radioterapia, quimioterapia, cabelo caía, unha quebrava, estômago não aceitava nem água, ela vomitava tudo, e eu tava lá.
- E onde foi que você cagou? 
- Fui até em psicólogo com ela, Rubão. Se 'cê acha que é foda aguentar ladainha de pastor, devia ir num psicólogo qualquer dia desses. E eu tava lá, em todas as sessões. Antes e depois da retirada da mamas.
- As duas?
- Deu câncer numa, o médico recomendou tirar a outra, por precaução. E dá-lhe psicólogo. Psicólogo duas, três vezes por semana. E eu lá, firme.
- E onde foi que você cagou?
- Quando ela tava recuperada, tudo cicatrizado, nem mais sinal de tumor, chegou a hora de refazer os peitos através de cirurgia plástica. E eu lá, prestativo. Tava lá no dia que o médico perguntou o tamanho que eram os peitos delas e ela falou o manequim, 42, eu acho. O médico perguntou se ela ia querer próteses do mesmo tamanho dos originais, ou menores, ou maiores, e ela quis do mesmo tamanho.
- A minha lata já secou.
Calil abre mais duas.
- Passei uns dois dias com aquilo na cabeça, e resolvi falar, com muito tato, com muito jeito...
- Imagino.
- Perguntei se ela, já que a fatalidade tinha mesmo acontecido, não queria pôr uns peitos um pouco maiores que os antigos, uns dois manequins acima, 44, 46, quem sabe 48? Perguntei assim na maior inocência, só uma sugestão, cara.
- Foi onde você cagou.
- Aí a casa caiu, Rubão. Nunca vi ela daquele jeito. Falou que eu não tinha respeito pela dor dela, falou que eu tava possuído pelo demônio da luxúria. Vê se pode?, ela que recitava salmos com meu pau na boca e eu que tava com o capeta da putaria no corpo. Falou que eu tava querendo aproveitar a doença dela pra satisfazer meus fetiches, essa coisa que homens têm com peitões
- Não dá pra dizer que você tenha sido dos mais sensíveis.
- Ora, porra, fala sério, Rubão, o que tinha de mais o meu pedido? 
- Se você acha que nada...
- Pensa, cara. Imagina que fosse o contrário, imagina que você tivesse câncer no pau e tivesse que amputar, e que fosse possível colocar depois uma prótese, um pau novo, uma rola zero km, um caralho...
- Já entendi, Calil, já entendi.
- E imagina que sua mulher pedisse pra você colocar um pau um pouco maior do que o antigo, coisa de dois, três, quatro centímentros maior. Não que ela não gostasse do original, mas já que a desgraça tinha se dado... 'Cê ia ficar ofendido? Dizer que ela tava querendo satisfazer fetiche por rola grande em cima de seu drama?
- É... vendo por esse lado...
-Tá vendo, só? E nem ia precisar ela pedir. A gente mesmo já ia pedir pro médico uma benga gigante, não ia?
- É.
- Frescura, Rubão, frescura. A vaca ficou com frescura.
Calil abre mais duas, as últimas das que trouxe. Rubens bebe calado, praticamente em concordância com Calil. A lógica de Calil, entre homens, deles para eles, era irrefutável.
- Que porra de barulho é esse, Rubão?
- Fogos de Ano-Novo.
- Caralho!!! Hoje já é fim de ano?
- Ou começo, tanto faz, é a mesma merda de continuidade.
- Eu gosto pra caramba desses fogos, cara - E Calil sai à janela pra ver as pirotecnias.
- Não dá pra ver quase nada da tua janela, Rubão, vamos lá pra baixo, na rua, ver direito.
- Vai lá, Calil. Eu fico aqui, nunca gostei dessas merdas.
- Feliz ano novo, Rubão.... sem abraço, né?, tá bom. Vou lá e já volto.
- Vai com Jesus, Calil.
Rubens fica a ouvir os passos de Calil pelos três andares de escadas que os separam da rua, escuta Calil empurrar a porta de entrada do prédio e, em seguida, fechá-la atrás de si, porta que só pode ser aberta por quem tem a chave ou pelo interfone de algum morador. 
Rubens, para confirmar, põe a cabeça para fora da janela e vê Calil na calçada, olhando feito bobo para os fogos de artíficio. Fecha com cuidado a  janela, para não fazer barulho, vai à porta do apartamento, tranca-a no meio, em cima e em baixo, fechadura comum e fechadura com chave tetra, apaga as luzes da casa, prefere beber no escuro, em silêncio, sozinho.
Finalmente, vai à cozinha e, com um risinho filho da puta no canto esquerdo da boca, tira o fio do interfone da parede. 

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