Débora

A todo homem deveria ser dado o direito de ter uma Débora em sua vida. Direito de nascença, legítimo e intransferível, previsto em pétrea lei, assegurado em Magna Carta, com julgamento e execução sumários aos que tentassem se interpor a ele.
Anexo à certidão de nascimento, todo ser nascido macho praticante deveria receber da vida um vale-Débora. Não sem a devida recomendação de só trocá-lo quando se julgasse na posse plena de suas faculdades físicas, mentais, psíquicas, morais etc, e de consumi-la com moderação. Julgasse-se... Porque ninguém está verdadeiramente preparado para uma Débora. Usá-la com moderação, então... Não há níveis seguros para o consumo de Débora.
Luís Fernando Veríssimo, a iniciar uma de suas crônicas : "Débora. O nome já é um atestado de saúde, com suas vogais explosivas".
Eu tive minha Débora. Mais fugaz que fogo-fátuo, mas tive. Menos duradoura e tão ilusória e ofuscante quanto uma pirotecnia de réveillon, mas tive. De forma inesperada e inadvertida. Esbarramo-nos numa dessas linhas de tempo alternativas, numa dessas dimensões paralelas, numa dessas cidades esfumaçadas do "Além da Imaginação".
Trazida à realidade, era um relação escura e clandestina, cheia de esconderijos, pendências e volatilidades. Uma relação que, para se tornar mais consistente, como eu quis desde o primeiro beijo, desde aquele hiato do primeiro beijo, quando as bocas partem em direção uma da outra, mas não há a certeza do encontro, a qualquer milissegundo uma delas pode desistir, demandaria tempo e, sobretudo, paciência e serenidade.
Débora os parecia possuir de sobra, o que a mim soava como indiferença, desinteresse, e talvez fosse, mesmo. Eu não os tive. Usei com Débora meu modus operandi clássico, portei-me de forma afobada e atabalhoada. Assustei-a. Débora era ave fugidia. De rapina, mas fugidia. 
Da mesma maneira que Débora se condensou da névoa, sublimou-se na neblina.
Não vou dizer que ela tenha levado os meus planos, os meus pobres enganos, os meus vinte anos, uma vez que muito mais próximos dos trinta estavam,e nem deixado mudo o meu violão, a minha inspiração. Pelo contrário, Débora me provocou uma boa série de poemas, poesias, até  um conto, escritos, enfim.
Não são escritos idílicos ao amor não concretizado, que árcade nunca fui, que nunca fiquei mostrando as ovelhinhas na relva à Marília. São escritos emputecidos, de escárnio e  maldizer.
Um desses poemas, fiz chegar aos olhos de Débora, traiçoeiros e cor de mel, através de uma amiga em comum. Antecedia-lhe, ao poema homônimo de meu algoz, uma extensa carta, não menos elogiosa.
Relatou-me depois, meu pombo-correio, minha valorosa e saudosa amiga Fernanda, que Débora lera a carta em silêncio, e em silêncio permanecera sobre seu conteúdo, nada comentara.
O poema, que logo reproduzirei, visto hoje, parece-me tanto pueril, mas tem uma carga de indignação e fúria da qual não sou mais capaz há tempos. Para o bem e para o mal.
Só sei que antes disso, Débora ainda perguntava vez ou outra por mim; depois da carta, nunca mais. 
Sabe-se lá por quê. Vá entender as mulheres. Ainda mais as Déboras. Por que me lembrei dela hoje, depois de quase 20 anos? Sei lá, talvez porque recordar seja mesmo viver.
Débora
Depois de tão pouco tempo
A tua presença já é tão pouca.
Já há outros ouvidos para minha voz fraca e rouca
Outra línguas a percorrerem minha boca.
Você já não me causa alteração:
Nem alegria nem martírio,
Você é febre controlada
Que não provoca mais delírio.

Foi quase ontem
E tua lembrança já me é tão velha
Tua essência mal é sentida.
Há sangue novo em minhas artérias,
Há outro pus em minhas feridas.
Você é dependência que não mais satisfaz,
É vício que não mais alucina.
Você é droga já metabolizada
E eliminada
Em lágrimas, suor e urina.

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