Boca da Madrugada

Boca da madrugada :
A hora que tenho para recolher as palavras
- essas caricaturas do pensamento -
Que vou deixando espalhadas pela casa ao longo do dia
Feito cueca no sofá
Meias ao canto da cozinha
Toalha molhada em cima da cama
Louça suja a acumular na pia
Brinquedo de filho a tornar em campo minado a sala e o corredor.
Hora que eu tenho para recolhê-las
Desamassá-las, pô-las ao varal
Passá-las a ferro
Organizá-lás, engavetá-las
E enfileirá-las
Num coerente texto
Numa ansiosa folha de papel em branco.
Mas que nada!
À boca da madrugada,
A cabeça está embotada
A mão, de juntas petrificadas.
Estou mais espalhado, fragmentado
Mais feito em poeira e ácaros
Que as palavras que fiz esperar o dia todo.
E aí vem o cansaço
- gari do cotidiano e da rotina -
E me varre, me junta
Me amontoa
Me põe prostrado numa cadeira na sacada
Com uma caneca estampada com a bandeira da Argentina,
Cheia de cerveja barata,
Que deita manta em meus pés gelados, envelhecidos
Repuxados por cãimbras
E, suspeito, flertando com uma artrite reumatoide.
E me põe prostrado
De frente para a Lua quase cheia,
Que me folheia a prata
Me acalanta com sua telepática luz de ninar.
E aí já era o texto
E aí fugiu o que eu ia escrever
Fugiu sei lá pra onde
E pouco importa
Pois sei que não vai voltar.
E aí logo vem um novo dia
- durmo cada vez menos -
Com mais palavras esparsas, confusas
Inseguras, desperdiçadas.
Com mais cansaço :
Concentrado, convicto
Cheio de si,
Que nunca erra o alvo.

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