Bicho Cego

Tenho uma biblioteca de papiros
Circunvoltos em meu cérebro,
Grafados com o cálamo da saudade e da desesperança.
Mas não consigo empunhar a caneta
E transpô-los,
A bico de tungstênio,
Para os retos caminhos e as ordeiras pautas do papel.

Tenho uma caixa de CDs,
Todos abduzidos do ciberespaço,
Precipitados das nuvens
E impressos à luz
(dados à luz) 
Em mídias de plástico.
Mas não me animo
À audição aleatória e fortuita
De nenhum deles.

Tenho dezenas de livros
Nunca lidos
Nunca abertos.
Palavras à espera de um olhar de lascívia
De um afago de dedos molhados em saliva.
Histórias, narrativas e desabafos em aflitivo aguardo,
Feito doentes terminais
Em sala de espera de médico
Que sempre se atrasa.

Tenho três plataformas de streaming,
Mais filmes que em qualquer antiga locadora
Que frequentei e tive carteirinha em minha juventude.
Não consigo me decidir por nenhum.
Acabo por ver
Programas de viagens
(lugares que nunca visitarei)
E de culinária
(iguarias que nunca prepararei).

Tenho um dique de lágrimas
A soçobrar
A pressionar em angústia e taquicardia
O brumadinho do meu peito.
Mas meus olhos secos
De tanto não quererem ver,
Meus canais lacrimais,
Tubulações e bocas de lobo obstruídas,
Negam-se em dar vazão
A esse meu mar salgado de Portugal.

Só consigo comer
(pantagruelicamente).

Só consigo beber
(sem nenhuma moderação).

Arremesado
(e reduzido)
Fui ao primordial
Ao quase irracional.

Um bicho cego
Cujo mundo são as tetas secas e murchas da mãe.

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