Um Dia na Vida (9)

05:23h da manhã. Ele sai da loja de conveniência com um latão de cerveja, o seu pão líquido de cada dia, e o vai tomando pelo caminho.
Só a dose elefantina de café - tomada em casa - não basta para ele encarar o nascer do novo mesmo dia e do mesmo velho sol, ambos plenos de estupidez.
O café o desperta; o álcool dá-lhe certa dose de conformismo para que possa seguir com o inútil porquê de ter despertado. O café bate; o álcool assopra.
Começa a atravessar a velha ponte metálica por sobre o rio emparedado pelos lados da avenida. À sua frente, quase ao meio da ponte, um sujeito de meia idade, semicalvo, de burguesa barriga e vestido como quem se encaminha para uma partida de tênis leva pelas coleiras dois simulacros de cachorros; numa das mãos do sujeito, um saquinho plástico a conter a merda recolhida por ele do chão de um dos cachorros, ou dos dois; um saquinho plástico, pelo jeitão do sujeito, biodegradável.
Saem, Ele e o sujeito, praticamente juntos da ponte e ficam lado a lado na calçada por alguns instantes, aguardando uma folga no fluxo do tráfego para atravessarem a rua.
O sujeito olha para Ele e nota a cerveja em sua mão.
- Já tomando uma? Tá animado, hein… começando cedo”, diz o sujeito, com um risinho de cu no canto de boca, num tom não de simples observação, sim de ironia barata, reprovação e pretensa superioridade moral; coisa de cara que tem o pinto pequeno.
- Pois é - diz Ele - eu, cinco e pouco da manhã, já tomando “uma”; você passeando com dois animais com caras de bobo, ainda que mais vivazes que a sua, que muito vagamente lembram dois cachorros e catando a merda que eles espalham pelo chão. De fato, nós dois temos sérios problemas.
Como também os têm, ele segue pensando em seu caminho, o velho viúvo que levantou às quatro da manhã para varrer e lavar a calçada; como também os têm os frequentadores matutinos das academias, correndo quilômetros em esteiras e, depois, indo de carro à padaria a alguns quarteirões de suas casas; como também os têm o catador de latinhas, a vasculhar as lixeiras de bares e restaurantes na esperança de que a noite tenha lhe deixado alguma gorjeta; como também os têm a velha de cabeleira desgrenhada e psicodélica que serve o café da manhã para o seu orfanato de gatos baldios; como também os têm a gorda que salta da van intermunicipal para ir passar o seu dia atrás do balcão de uma loja de tintas, a sua rotina sem nenhuma cor.
Só não os têm a puta. Alquebrada pelo duro expediente, abrindo e passando pelo estreito portão de ferro de acesso à casa de fundos em que mora. Que toma um banho, que faz uma ducha higiênica, que faz um gargarejo com antisséptico. Que vai dormir o justo sono dos injustiçados.

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13 Comentários

  1. "I'read the news today, oh boy..."

    Imagino que você não goste de Beatles mas o título desta sua série de textos não teria como ser melhor.

    Engraçado, ao ler este, lembrei de um texto do Bukowski que fala de dois sujeitos que roubam do necrotério o cadáver de uma bela mulher. Lembrei mais especificamente do trecho do amanhecer na praia.

    Aquele Abraço!

    Cássio - Recife/PE

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    1. Rapaz, eu sou meio xenófobo em relação à música, exceções feitas a The Doors e Frank Sinatra, mas os Beatles não me desagradam, não.
      Acho que também já li esse conto do velho Buk, há muito tempo. Os caras acabam trepando com a moça, né? Mas não me lembro do desfecho dele nem desse amanhecer na praia.
      Lembra o nome do conto?
      Abraço.

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    2. O conto é "a sereia que copulava em veneza, california".

      Tenho o "crônica de um amor louco" (L & PM; 1995) , onde este conto está incluído. Não sei se saiu tambem em outros titulos do bukowski publicados por aqui. Também não sei o motivo de associar o teu texto com este conto...

      Sobre o final, os caras levam o corpo para uma praia distante e ja no amanhecer, conseguem desovar o corpo da mulhet mar adentro.

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    3. Rapaz, também tenho esse livro. Já localizei o conto. Vou relê-lo agora.
      Valeu.
      Abraços.

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  2. Olá, Marreta.

    Belo texto. Me lembra das amenidades do cotidiano. Sempre penso que o que estou fazendo parece um grande problema, pelo menos do ponto de vista dos "outros". Mas a real é que os "outros" sempre estão a fazer coisas que, para nós e nossas vidas, parecem coisa de retardado.

    Lembro de um senhora do bairro que tinha uma cachorra meio demente. A cadelinha vivia com problemas, teve que amputar as duas pernas traseiras e andar com uma cadeira de rodas, mas não importava, todo dia a senhorinha estava a caminhar com a cachorra pela rua, para que ela se "exercitasse" um pouco. Todos dizíamos que ela era maluca, mas nenhum de nós estava na situação dela, com alguém querido praticamente inoperante. Cada um tem seus problemas e eles são do tamanho do mundo para nós.

    Em tempo, as putas são as pessoas com espírito mais duro, acho, principalmente as de puteiro barato. Só Deus sabe o que elas têm de aturar durante o dia. Têm que estar com alma blindada ou entorpecida para aguentar essa vida.

    Abraços.

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  3. Belo relato do cotidiano matutino de médias e grandes cidades. Repassei aqui na cabeça toda a paisagem urbana narrada! E ainda visualizei até mesmo o risinho de cu no canto da boca!
    Durante anos, acordei cedo. Estudei toda a vida pela manhã. Andava a pé para todo canto. E era esta a paisagem que sempre me encontrava... Hoje em dia, não tenho hora para dormir, acordar, comer, etc...

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    1. Meio sorte, meio azar. Estou indisciplinado há 16 anos. E manter rotinas e horários é positivo.

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  4. Pensei em uma versão "onanista" (de apenas um personagem) da música do Chico: "todo dia ela faz tudo sempre igual...". Mas creio que no mundo real a resposta ao sujeito dos cachorros talvez levasse a uma troca de palavras mais ásperas ou porrada mesmo.

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