Cerveja-Feira (42)

Mudei-me, recentemente; há cerca de um ano. Um edifício mais novo, moderno e tal. Há um grupo de três ou quatro moradoras, de três ou quatro senhorinhas, que se ocupa e se dedica voluntariamente a renovar a decoração da entrada do prédio de acordo com as datas comemorativas mais próximas e correntes. Para cada festividade, uma decoração temática. E as velhinhas são talentosas e caprichosas. Fica mesmo um trabalho de gabarito.
Nesta semana, saíram os motivos juninos e assumiram o seu lugar os do Dia dos Pais. Alguns cartazes bem impressos e coloridos com dizeres do tipo "Pai, Herói, Amigo", gravatas, canecas de café, embalagens de barbeadores elétricos, de loção pós-barba, caixas de meias e de lenços. Tudo muito bem distribuído e organizado com muita estética e bom gosto. Desde a portaria até às portas dos elevadores.
E em um item específico da decoração, as velhinhas acertaram em cheio. Foram de uma extrema felicidade. Sobre o tampo de vidro de uma mesa, um arranjo feito com um balde de alumínio todo decorado e cheio de latas de cerveja e garrafas long neck.
Que pai das antigas quer ganhar o que no Dia dos Pais? Pijama, meias, cuecas, perfume, uma lembrancinha "artesanal" feita pelo filho pequeno na escola, na aula de Artes? Porra nenhuma. A gente até sorri e agradece. Mas porra nenhuma.
Pai das antigas quer é ganhar cerveja no "seu" dia. E não só no "seu" dia. Em todos, de preferência.
Uma única falha no arranjo da velhinhas. Das mais perdoáveis, é verdade, mas a respeito da qual não posso me furtar ao registro. Nem chega a ser uma falha, uma vez que - tenho  certeza - não nascida de descuido ou negligência, mas sim de um provável desconhecimento de causa. 
As velhinhas só enfeitaram o balde com cervejas afrescalhadas. Heineken, Stella Artois, Baden Baden, Colorado, Budweiser. Confundiram pai das antigas com pai gourmet! Pais que entornam com pais que "degustam"... 
Talvez, por não entenderem muito do assunto, por não serem do métier, tenham se informado com alguém sobre as marcas de cerveja para bem confeccionarem seu arranjo. E devem ter perguntado para filhos ou netos, essas gerações mais frouxas e embichadas. Tivessem consultado e ouvido seus maridos (se é que ainda os tenham vivos), o arranjo estaria perfeito, só teria Antarctica, Brahma, Niger, Caracu e Malzebier!
Achei o resultado final um tanto quanto pedante, esnobe.
Então, o diabrete que habita o meu ombro esquerdo cutucou-me as ideias com seu tridente. "E se a gente" - começou ele - "desse nosso toque autoral nessa viadagem aí, e se a gente avacalhasse um pouco com toda essa afetação e falso refinamento?".
Ato reflexo, pensei : já sei! Colocarei, ao lado das Stellas, Badens etc, um vistoso, berrante e vermelho latão da Lokal Beer! Genial, disse para mim mesmo! Molecagem de primeira! Uma traquinagem digna de um saci!
Já podia até imaginar os viadinhos degustadores passando, olhando e torcendo seus narizes sofisticados para o latão da Lokal. Como se ela fosse um mendigo fedorento e cheio de chagas que adentrasse um baile de gala. O latão de Lokal, uma sórdida nódoa de lama na roupa de brim branco muito bem engomada, que, como assegura o Bandeira, é como a poesia tem de ser.
Porém... como eu disse, é um prédio novo, moderno. Pior que moderno : modernizado, modernoso. Com câmeras de vídeo por todos os lados, em cada canto e reentrância. Mais câmeras que em "1984". Um verdadeiro Grande Irmão, o síndico. Um voyeur orwelliano. Uma, inclusive, bem no canto esquerdo do teto, mirando direto no balde com as cervejas.
A principal graça da molecagem, da traquinagem, é justamente o anonimato de seu autor. As pessoas sofrerem o seu efeito e ficarem se perguntando e ficarem supondo e ficarem sem saber quem a executou.
A câmera acaba com o anonimato. Extermina a graça. Assim, minha ideia não será dada à luz; permanecerá, em eterna incubação, no endométrio da imaginação.
É a merda da tecnologia a serviço do politicamente correto, a serviço de dizimar o humor. De tentar inibir e castrar a criatividade, a travessura, o menino que vive no velho. De anular a imaginação, a travessura e a meninice, até que a tecnologia não é capaz. Nada o é. Quem com elas nasceu, vestirá seu paletó de madeira com elas a lhe servirem de sorridente e colorida mortalha. Mas impede as suas saudáveis práticas. A Terra do Nunca está sob pesada vigilância.
Um balde só com Stellas Artois? Que mundinho mais chato, mais de merda...
Abaixo, uma simulação virtual de como ficaria o arranjo das velhinhas se acrescido de meu luxuoso auxílio.

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7 Comentários

  1. Pra combinar com a Lokal ficaria legal um maço de Derby e um pacote de torresmo, daqueles de quebra os dentes.
    Ganhei cartões feitos na escola e outra bobagens. E fico feliz. Não quero ganhar é nada, desde que não ganhe dor de cabeça.
    Hj, minha cerveja será na churrascaria, mais tarde...
    Abraços!

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    1. Eu também não faço a menor questão de ganhar nada, nunca dei muita importância a essas datas. Nem o meu aniversário, eu comemoro, mas também tenho guardados todos os cartões etc que meu filho fez na escola.
      Abraços.

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    2. Domingo veio a cesta tradicional. Só comida (queijos, presunto cru, azeitona gorda, biscoitos, um gim com tônica e uma garrafa de vinho bacana. Ao menos é um presente útil!

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  2. Acho que essas cervejas (Heineken, stella...) são para aqueles degustadores e descolados que sabem combinar bebidas/petiscos e orgulhosamente, assistem "champions league" e arrotam serem torcedores dos grandes times europeus. Nada contra, só acho meio caricato e engraçado.

    Aquele abraço, Azarão. E um ótimo domingo dos pais com sua familia.

    Cássio - Recife/PE.

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    1. Penso como você. Nada contra, cada um toma o que quer, mas fica um negócio meio forçado e eu não resisto a dar uma avacalhada. É meio como diz o Cazuza na letra de Burguesia : são caboclos querendo ser ingleses.
      Já foram vacinados?
      Um ótimo Dia dos Pais para você também, meu caro.
      Abraço.

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    2. Cara, eu adoro Heineken. Porque é o dia a dia. Sempre que reúno amigos é o que mais tomamos com um churrasco!

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