Feliz Dia do Professor é o Caralho!

O velho professor, que há tempos ultrapassou os limites da exaustão e do desânimo - que foi trespassado por eles, em verdade -, que há tempos desenvolveu a arte de respirar o vácuo e a eterna derrota, trôpego e coxo, arrasta-se para o fim de mais um ano letivo, de mais um ano de nada; se muito, de indignidade.
Em reunião pedagógica, recebe a solicitação de seu superior hierárquico para que proceda em um urgente plano de recuperação : salvar da reprovação o quanto mais puder de almas analfabetas, almas já condenadas, por elas mesmas, a vagarem, depois que saírem da escola, num purgatório, num limbo de subemprego e reprodução de suas misérias, dos mais variados tipos. Podem não acreditar os que estão de fora do chamado "processo educacional", mas muitos optam, sim, pela continuidade de suas misérias, pela comodidade delas. Muito das agressões - sejam físicas ou verbais - sofridas pelo professor hoje em sala de aula vêm disso : do professor, muitas vezes, querer tirar o aluno de sua confortável miséria, e ele reage violentamente.
O velho professor anui. Não exatamente sem força para se opor, mas sem esperanças de que sua contrariedade faça algum efeito, de que seja, de fato, sequer ouvida. Preencherá, pois, a papelada burocrática. Escreverá na ficha quais competências e habilidades, quais saberes e fazeres, quais conteúdos inúteis sua medida emergencial contemplará. Fará a revisão solicitada. Ainda que o termo "revisão", no atual contexto escolar, soe-lhe de uma total inexatidão. Uma vez que pressupõe uma antevisão, uma visão primeira do assunto : revisão.
Não que o velho professor, dentro de suas mínimas chances e de seus exangues recursos e esforços, não tenha trazido à luz e exposto a matéria de sua competência. Isso é que não. Ele o fez. Certamente que o fez. Com galhardia, ele o fez. Mas daí à sala ter lhe dado olhos, ouvidos, atenção e crédito, interpõe-se uma grande distância.
Uma parte da sala, sempre com seus fones de ouvido e a verificar e a responder mensagens em seus celulares em língua pictográfica e gutural; outra parte, a dormir por sobre as carteiras e as mochilas e os imaculados cadernos, chamados à inconsciência por seus organismos para reporem o déficit de sono da noite anterior, passada em olhos de coruja vidrados em jogos virtuais e/ou pornografia e/ou redes sociais - alguns derrubados pela maconha matinal de todos os dias; uma outra parte da sala, finalmente, olha para o professor; para ele, não, através dele, sem prestar-lhe real atenção, sem entender sequer o vocabulário básico do velho professor, quanto mais entender os meandros de seu raciocínio, olham para ele como a uma ruína de uma antiga civilização.
Revisão? Do que nunca foi visto, embora exaustivamente mostrado?
Ainda assim, o velho professor respira fundo e segue. Diz à sala do período de revisão, da importância pedagógica do mesmo, diz que fará, antes, uma avaliação diagnóstica para detectar os pontos de maior deficiência e, posteriormente, solucioná-los. Pede que peguem seus cadernos. Passará algumas questões para nortear a atividade. Informa aos alunos do conteúdo em seus cadernos a ser consultado na resolução das mesmas. Passa as questões, diz que comecem e que estará em sua mesa manca, à disposição para qualquer dúvida que possa surgir no decorrer da realização da atividade.
Cala-se, aliviado. Senta-se. Observa a sala às voltas com a atividade que acabara de propor : uma parte da sala, sempre com seus fones de ouvido e a verificar e a responder mensagens em seus celulares em língua pictográfica e gutural; outra parte, a dormir por sobre as carteiras e as mochilas e os imaculados cadernos, chamados à inconsciência por seus organismos para reporem o déficit de sono da noite anterior, passada em olhos de coruja vidrados em jogos virtuais e/ou pornografia e/ou redes sociais - alguns derrubados pela maconha matinal de todos os dias; a outra parte, finalmente, começa a escrever, mais a vasculhar por fragmentos de textos que pareçam se encaixar à questão pedida (não raro, o velho professor vê alunos "pesquisando" em cadernos e apostilas de outras matérias, procurando respostas de matemática no caderno de geografia, de história no de biologia etc), mais a desenhar, a bem da verdade, como quem copia indecifráveis hieróglifos sob um papel de seda.
O velho professor senta-se e espera pelas dúvidas, que sabe que não virão. Onde não há vontade de pensamento, não há dúvida.
Para distrair-se até o soar do sinal, o velho professor começa a ler um livro emprestado por uma colega, Aforismos para a Sabedoria de Vida, de Arthur Schopenhauer, o alemão ranzinza e pessimista. Procurar no pessimismo de Schopenhauer um anódino para o seu cotidiano. Começa a ler. Uma página, duas, vinte e duas. Pessimista, o Schopenhauer? Sempre superestimados, os tais filósofos, ainda mais se alemães. 
Pessimismo? Frente ao contexto do velho professor, um mar de rosas, isso sim, um mar de rosas a visão Schopenhaueriana.
O tão afamado pessimismo de Schopenhauer?
Sabia de nada, o inocente e ingênuo alemão.

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10 Comentários

  1. Perfeito comentário com conhecimento de causa, infelizmente é a fotografia da realidade do ensino de hoje, de gerações analfabetas funcionais que por falta de conhecimento básicos e ignorantes políticos é o efeito da causa do Circo Brasil de hoje.

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  2. Nobre azarão...finalizei o então segundo grau há 25 anos (1994) e o cenário já não era muito diferente deste que você descreveu. Cansei de ver colegas que se lascavam o ano inteiro com notas baixas (nào só em 'exatas' mas até nas de 'humanas' e língua portiguesa) e na reta final, ao apagar das luzes do ano letivo, "milagrosamente" viraravam alunos exemplares e mesmo indo para provas finais, eram aprovados; quantas horas me dedicava a estudar, abri mao de diversoes para tirar uma nota decente (não trabalhava; era o mínimo que eu deveria fazer) em física, matemática, etc. No ano seguinte, esse pessoal estava a me acompanhar na série seguinte. Para mim como estudante, sentia que isso mme desvalorizava. Como era isso? Lendo seu texto, tive uma ideia do que acontece (ia).

    Um cordial abraço e obrigado por suas aulas aqui no blog. Certamente por aqui, todos assimilam e ponderam mais que nas suas aulas presenciais.

    Cássio - Recife/PE

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    1. Triste ver o grande declínio da educação do Brasil em tão pouco tempo. Terminei meu segundo grau apenas 10 anos antes de você, em 1984, e o cenário era bem outro. Tínhamos que nos desdobrar, que ralar de verdade para passar de ano. Podíamos ser reprovados por meio ponto que ficássemos abaixo da média, e apenas em uma matéria. Hoje, no conselho de classe final, é corriqueiro, ao menos aqui no estado de SP, aprovarmos alunos com três, quatro e até cinco médias finais vermelhas. A escola aprova porque quer? Não meu caro, porque a lei obriga. Porque se o vagabundo não for aprovado, a responsabilidade pela vagabundagem do sujeito recai imediatamente sobre a escola e o professor.
      Sim, isso desmotiva demais o bom aluno. Ao bom, resta o consolo (eu bato muito nessa tecla com eles) de saber que, amanhã ou depois, quando for enfrentar o vagabundo num vetibular, num concurso, numa entrevista para uma vaga de emprego, passará por cima dele feito um rolo compressor. Um consolo a longo prazo e que pode nem acontecer. Mas, enfim, o que mais posso dizer a um honesto que vive em país de picaretas?
      E eu é que agradeço por todos seus comentários aqui.

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  3. Eu sou mais velho que todos vocês, pois terminei o segundo grau no jurássico ano de 1968. Pelo menos no colégio onde estudei, era foda passar de ano, tinha de estudar mesmo. No último ano, entretanto fui estudar à noite por pura vagabundagem (pois não trabalhava). E vi o começo da derrocada do ensino público (estudava no Colégio de Aplicação da UFMG), pois os professores de física e química literalmente passaram os piores alunos (eu era um deles). O de química aplicou uma prova final e disse aos alunos para escrever "qualquer coisa" (literalmente!). Fiz umas operações aritméticas e mais alguma idiotice sem sentido. Passei com a nota mínima.
    O de física inovou mais ainda: 90% das aulas foram ministradas pelos próprios alunos. Cada um escolhia o tema e era uma chatice insuportável ouvir um aluno sem didática e despreparado dar sua aula. Os caxias deram várias aulas. Eu dei apenas uma, pois era obrigado. A matéria foi "Lei de Hooke" assunto que eu desconhecia completamente. No final do curso, lembro-me bem do diálogo: "Você está precisando de tanto. Qual a nota que você acha que merece pela aula que deu?" O aluno dizia merecer essa ou aquela nota (que desse para passar, lógico). E o professor dirigia-se à classe: "Vocês acham que ele merece?" Alguns gatos pingados diziam que sim e pronto. No meu caso, por me relacionar bem com toda a turma, fui aprovado por unanimidade. Alguém teve a cara de pau de dizer "a aula dele foi muito boa" - mesmo que eu não tenha conseguido responder a nenhuma das perguntas formuladas. Passei também com a nota mínima. Os caxias ficaram (obviamente) com notas melhores. Ninguém foi reprovado.
    Para finalizar, lembro uma frase que meu filho pregou no quadro de avisos que tinha em seu quarto: "trate bem o nerd da sua sala, pois um dia ele será o seu patrão".

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    1. Nem a certeza deste consolo, de ser o patrão do vagabundo, existe mais para o nerd. Num país de merda e de merdas feito o nosso, não raro um picareta, um enrolador, acaba se dando melhor que o honesto e o dedicado. No Brasil, temos muito poucos nerds. E muitos merds.

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  4. Dada a sua decepção com o ofício, qual outra profissão escolheria, se tivesse outra oportunidade, caro Azarão?

    Confesso que se tivesse competência e estômago para tanto, teria me dedicado à medicina.

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    1. Eis uma pergunta que me faço todos os dias, caro anônimo. Mas a profissão nos emburrece tanto, limita tanto a nossa visão, que fica difícil até imaginar uma possível rota de fuga. Ainda mais na idade em que já me encontro.

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  5. Que post excelente, prof. Azarão. Certamente todos aqui poderiam contar muitos descalabros e esculhambações no nosso ensino; pra nao ficar muito tenso, muitas coisas boas e engraçadas também devem ter acontecido e se fosse o caso, serem contadas num outro post; quem sabe...

    Essas deficiências e jeitinhos (alguns exemplificados pelo JB) que impregnam também nosso ensino, contribuem muito para o caos social que defrontamos. É o país onde o sujeito que tem "aquele" QI, "aquelas" qualidades que só os gênios do rh reconhecem é valorizado e os que demonstraram esforço E empenho durante a vida acadêmica, vão ficando pelo caminho ou se submetendo a subempregos e respondendo a chefes despreparados mas com os contatos certos.

    Cássio - Recife/PE

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  6. lembro do filme idiocracia (2006)
    e os idiotas venceram por estarem em maior numero

    abs!

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