Pequeno Conto Noturno (76)

- Precisas mesmo ir?
- Quero - diz Rubens.
- ???
- Mudar de ares, de bares, de mares e de marés.
- Não tens medo de se perder?
- Pois é o que eu mais quero. Me perder. Melhor : me desfazer, desvanecer-me.
- ???
- Enterrar a lenda, o personagem.
- Haverá alguém a carpir por ti neste velório?
- Não haverá velório.
- Um suicídio?
- Assistido.
- Por quem?
- Por mim. Só por mim. Espero.
- E conseguirás mesmo enterrar a tua lenda, a tua glória pretérita que tanto te assombra por te veres retalhos de lençóis fantasmagóricos de ti?
- Sim, darei cianureto à lenda, que, inadvertidamente, criei, deixei que criassem de mim. Leiloarei barato o retrato de Dorian Gray que pintei de mim mesmo. Ou...
- Ou?
- Ou, desgraçadamente, ela ressurgirá no novo ambiente, em nova reencarnação.
- E aí?
- Aí, não terei mais tempo para outra tentativa; aí, será de vez o fim, o fim do projeto de homem que pretendi ser um dia.
- E o que fará, neste caso, da ressurreição do teu melhor que queres tanto matar?
- Beberei.
- E já não é o que estamos a fazer?

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