O Herói Do Dia

O herói está com febre moderada. Enrolado em um lençol e bebendo chocolate quente com rum, o herói está. Quase incapaz de debelar a invasão sofrida por seu organismo. Para isso os heróis têm suas identidades secretas e suas bat-cavernas, para se esconderem quando não dão conta de si próprios.
Tocam a campainha da casa do herói, o herói resolve não atender. Tocam, de novo, a campainha da casa do herói; que não é das criaturas mais simpáticas que já pisaram esse planeta, portanto, conclui o herói, se arriscam-se num segundo toque, é porque precisam mesmo dele. O herói resolve atender.
O herói dá uma alinhada no cabelo, fazendo de pente a mão; esfrega os olhos e a face, como a vestir uma máscara imaginária, ocultar a cara de doente, não é de bom tom o herói apresentar-se de semblante combalido. E consegue compor uma imagem apresentável. Na cabeça do herói, pelo menos, ele consegue compor uma imagem apresentável.
Na falta de visão de raios-X, o herói se vale do olho mágico da porta : uma vizinha, de um dos andares inferiores ao seu. Ao longo da vida do herói, várias foram as vizinhas a baterem em sua porta, a solicitar o óbvio, o clichê, um pouco de açúcar ou sal, uma cebola, um dente de alho, um pedaço de bombril. E o herói sempre as atendeu nesses pequenos socorros nada valorosos.
Dessa vez, no entanto, o abrir da porta revela uma fisionomia que dificilmente estaria à cata por açúcar. Há um escorpião a passear pela sala da moça, logo o herói fica a par. O herói se empertiga. É claro que ele podia resolver. É para isso que ele estava ali. Era para isso que havia nascido. Some-lhe até a renitente tosse.
O herói desce os andares a tranquilizar a moça, a dizer que escorpiões são vilanizados em demasia, que nem oferecem tanto perigo, o único risco é pisá-los por acidente, pois costumam se abrigar dentro de sapatos; os escorpiões, segue o herói, são tão-somente baratas com ferrões, são também artrópodes, do mesmo filo das baratas, uma simples chinelada os põem fora de combate.
A moça apavorada pelo medo atávico que alguns seres humanos têm de animais bem menores que eles e o herói a recitar a classificação zoológica do bicho. O herói não tem a menor noção da realidade, aliás, é sua condição sine qua non para continuar como tal, tivesse alguma percepção do real, deixaria de ser herói.
E lá estava o escorpião, tal como a moça havia dito, a passear pela ardósia da sala, daqueles pequeninos, amarelos, Tityus serralus, informou o herói à moça. 
O herói bem podia ter procedido como o instruído à moça, um pisão certeiro e firme de pé calçado e pronto : fim do escorpião. Decidiu-se, no entanto, por um ato inédito. Primeiro, para mais impressionar a moça; segundo que sempre teve vontade de testar essa possibilidade, sempre lhe pareceu possível e de mínimo risco : o herói aproximou-se por trás do escorpião e, num rápido golpe, segurou a ponta da cauda do escorpião, prendeu o ferrão entre seus polegar e indicador. A moça deu um gritinho, um misto de sobressalto, susto, surpresa e, por que não?, de êxtase.
O bicho se debateu, envergou-se e alcançou a mão do herói com suas pinças dianteiras, que nem dano ou dor infligiram. A moça devia estar excitada com aquela demonstração de bravura e agilidade, pensa o herói, e vai mais longe : quebra o último segmento da cauda do escorpião, o do ferrão, arranca-o e descarta o bicho pela janela, dizendo que agora ele não fará mal a ninguém. Desaconselha, contudo, à moça imitar seu feito no caso de um novo escorpião, só pessoas com habilidades especiais podem se dar a tal proeza, o chinelo era mesmo o mais indicado. 
O herói recebe um "obrigado" anêmico e logo está a subir as escadas. Nem um abraço mais caloroso, o herói ganhou. Nem convite para um café, nem uma conversa que levasse ao início de promissora amizade, nem um peitinho. Em outras duas ocasiões, a mesma vizinha ainda bateria à porta do herói. Uma tesoura emprestada em uma das vezes (o herói tinha) e uma aspirina na outra (o herói tinha), porém nada derivou desses favores, nem um café, nem uma conversa, nem um peitinho, que seriam as naturais sequências e consequências da realidade de vizinhos de sexos opostos que moram sozinhos e trocam favores.
Mas o herói é isso, alguém para quem a realidade não acontece.

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