A Mesma Máscara Negra

Não gosto de Carnaval, nunca gostei e nem nutro a ilusão de que os antigos fossem bons, puros, ingênuos ou mais decentes, nada disso, não tenho saudades do que não vivi. Mas sei das músicas dos carnavais antigos - ah, sim, as músicas -, essas eram belíssimas.
Dentre uma miríade delas, e que ainda me comove por vezes, está a clássica "Máscara Negra", de Zé Keti (lembrei-me agora, e também, de "Vila Esperança", do Adoniran, mas essa fica pra outro dia).
Há aspectos tocantes e de singular brandura na letra da canção.
A surpresa nada surpresa do Pierrot frente ao reencontro com Colombina, seu espanto comedido, mais feito de gentileza que de sobressalto, ante aquela coincidência presumida. Entendam por coincidência presumida que o casal nada fez em planejar tal encontro, mas sabiam da inevitabilidade de estarem ali, naquele momento, naquelas exatas circunstâncias.
Belo também é o saber tácito e mútuo, e sem dramalhões posteriores às cinzas, acerca da brevidade - e mesmo da especificidade - de sua relação. Eles sabem que ela muito bem existe ali e só ali pode muito bem existir. Não ousam, não têm intenção, urgência ou mesmo vontade em ampliá-la para os outros dias do ano, são inteligentíssimos emocionalmente em aceitá-la como um doce hiato, um respiradouro, uma bolha iridescente de tempo. Por isso é uma relação sem desgaste, por isso já atravessa alguns séculos, e a música de Zé Keti pelo menos dois, por isso voltarão sempre a se encontrar, mesmo que em outros carnavais, mesmo que sejam outros por sob a fantasia.
E há, óbvio, o aspecto da Máscara Negra, as Luas de Veneza, o furtivo, Casanova a escalar janelas, o salão escuro, o anonimato, o ninguém por detrás da máscara, a não-necessidade de despir e vivissecçar o outro, bem como a não-necessidade de que os outros saibam deles. Dessa elegante discrição, tenho saudades, sim.
Os foliões contemporâneos querem notoriedade, holofotes, querem ser celebridades, os salões escuros recendendo a lança-perfume e as máscaras de mesmos matizes foram esmagados pelos sambódromos com luzes de mercúrio, pelas capas de revistas, orkuts, facebooks e twitters da vida.
Mas podem ainda ser vistos, Pierrot e Colombina. Sei disso porque os vejo de vez em quando, há de se olhar, no entanto, com zeloso reparo e dolência. Já consegui divisá-los fugazmente nas madrugadas umbrosas, nas esquinas de breu, nas escadarias enfumaçadas e fedendo a cigarro de bares enfumaçados fedendo a cigarro e até, em algumas ocasiões, os flagrei em sua dança de serpentinas dentro de mim.
Pierrot e Colombina ainda sobrevivem por ai. Aos frangalhos, mas sobrevivem. Na música do Zé Keti e em meus fevereiros existenciais.

Abaixo, a letra:
Máscara Negra

Tanto riso, oh quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão

Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrô
Que te abraçou
Que te beijou, meu amor
A mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval.

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