Síndrome de Belchior

Acredito que todos - ou quase - tem uma estratégia de fuga guardada em algum lugar, uma fantasia de sumir no mundo, e do mundo, quando as agruras pesarem sem remédio.
Eu - e nisso sou como a maioria - também tenho a minha, que nem é das mais originais.
Vejo-me evadido do mundo no cimo de uma serra gelada, numa casa de toras de madeira à Daniel Boone (alguém lembra?), tosca e rústica, mas sem que isso impeça uma calafetação, água encanada, energia elétrica. Até porque não estaria fugindo de um certo conforto e comodidade, estaria fugindo da humanidade, pura e simplesmente.
Exoneraria-me do meu cargo, encerraria contas em bancos, tiraria o nome dos talões de água, luz, IPTU, cartões e documentos dos mais variados, órfão do mundo.
E viveria de produzir vinhos, pães e queijos, para consumo próprio e para pequenos escambos com outros víveres, realizados na cidadezinha ao pé da serra, distante, muito distante, eu a avistando por entre brumas e ela nem desconfiando da minha existência.
Receberia escassas visitas, poucos e seletos amigos e poucas e seletíssimas amigas, que nem só de vinho, pão e queijo vive o homem.
Tenho esse plano de escape há muito tempo, acho que desde os meus vinte e poucos anos.
Claro que nunca se tornará real, mas pensar em sua possibilidade quando o dia se mostra mais carrancudo, dá um certo alento.
Mas até isso - a possibilidade de uma ilusão -, essa sociedade globalizada, esse mundo Orwelliano está nos tirando.
Vejamos o caso desse rapaz, o Belchior.
Músico, pintor e, principalmente, poeta. Dos bons, dos verdadeiros.
O cara resolveu sumir, deixar o mundo para trás, escondeu-se lá numa cidadezinha uruguaia de pouco mais de 2 mil habitantes. E não foi, como pensam os mais rasos de alma, das dívidas que ele fugiu. Tenho plena certeza de que não. Belchior fugiu da civilização, e de todos os seus danosos efeitos colaterais.
Fugiu? Fugiu porra nenhuma.
Armaram um esquema de busca, mobilizaram o país para acabar com o sossego do cara.
Torci fervorosamente para que não o encontrassem, mas, já viram, né?, sempre fui um puta dum pé-frio.
A TV Globo achou o cara, eu não vi a reportagem, mas quem viu me disse que ele não estava com semblante dos mais animados. Também pudera. Primeiro porque ele nunca foi das pessoas mais otimistas, basta ouvir algumas de suas letras (sugiro "A palo seco"), e nem é pra menos, ele é pensante, isso tira qualquer chance de otimismo; e segundo, quem poderia ficar animado ao estar lá tranquilo e sossegado e, de repente, ver irromper a bichona do Zeca Camargo pela sua porta?
Não poder nem mais encetar um tentativa de fuga...
Comecei a me sentir mal, ficar ruim, a me dar uma ansiedade, uma falta de ar, um peso nos pés, na cabeça, um travar de mãos, uma claustrofobia ainda que em espaços abertos.
Estamos diante do advento de um novo transtorno psicossomático.
Requeiro desde já o seu batismo, esse ninguém tasca: Síndrome de Belchior.

*se quiserem ouvir Belchior em "A palo seco" é só dar uma clicadinha na minha Marreta

Postar um comentário

0 Comentários