O Que Só M. Valentine Leu

Sempre considerei perigoso o ato de escrever, ainda mais agora, sob as rédeas e o látego do governo do amor, do reinado absolutista de Moraes. O autor sabe e tem controle sobre o que escreve, mas ignora e não tem ingerência alguma sobre o que o leitor lê, ou pensa que leu, ou o que interpreta do que leu.
 
Por isso, sempre desconfiei (e ainda desconfio), sempre mantive um pé atrás, em relação às tais análises e críticas literárias, feitas por pessoas que, na falta de originalidade para escreverem suas próprias obras, metem o bedelho a "explicar" a verve alheia, a dissecarem textos, poemas etc e a extirparem deles significados que, tenho a mais firme das certezas, o autor nunca imaginou ou quis imprimir à sua obra.
 
Lembro-me bem dos meus velhos livros e apostilas de literatura do colégio, nos quais a interpretação de um texto ou poema, muitas vezes, era maior que os próprios.
Um exemplo de que bem me recordo é o do Poema do Beco, Manuel Bandeira.
 
"Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? 
- O que eu vejo é o beco."
 
Simples assim. Uma verdadeira porrada. Um soco no fígado desferido por Rock Balboa, seguido de um cruzado de direita, ou de esquerda, no caso de Rock, na ponta do queixo. Eu, que sempre tive temperamento depressivo, sou nocauteado em todas vezes que o releio. Nocauteado de inveja, por não tê-lo eu o escrito.
 
Pois no livro didático, logo abaixo do poema, estendia-se, por uma página e meia, a análise e a interpretação do Poema do Beco, dezenas e dezenas de linhas, talvez milhares de palavras "explicando" as duas linhas do poema, linhas e palavras que, se condensadas, se compactadas num espremedor de batatas, mal se reduziriam a um ponto final. Duvido que Bandeira, caso lesse a tal análise, reconhecesse seu poema nela. Duvido. Ele, simplesmente, estava lá, num estado ou num momento de depressão, de melancolia, e escreveu o poema, as duas linhas saíram num átimo, num tapa.
 
Lembro-me também de uma crônica de Mário Prata, na qual ele dizia sobre uma outra crônica sua, utilizada no vestibular para medicina de uma universidade federal, As Meninas-Moça. Na época, Mário Prata namorava uma jogadora de vôlei de uma equipe patrocinada pelo Leite Moça, da Nestlé, que cortara então o patrocínio, decretando, assim, o fim da equipe.
 
O vestibular propôs oito questões a respeito de As Meninas-Moça. Por curiosidade, conta-nos Mário Prata, ele se meteu a resolver as questões. Errou as oito. O próprio autor seria reprovado sobre o significado de sua produção. Quem elaborou as questões, viu na crônica o que Mário Prata nem sabia que escrevera. Se é que escrevera...
 
"A crônica imposta aos jovens se chama As Meninas-Moça. Publicaram a danada inteira e depois fizeram oito perguntas em forma de múltipla escolha. E eu, que escrevi, que sou o autor, errei as oito. Imagino os meninos e as meninas, que querem ser médicos, submetidos a tal dissecação." 
 
E tudo isso porque minha última postagem, 41-Bis. Ou : Avião Dá Marcha à Ré?, republicada no blog Ozymandias Realista, recebeu lá um comentário dos mais bem escritos, muito melhor escrito que a própria postagem. O comentário partiu de uma leitora e colaboradora do blog, acho que a única mulher do time - cuidado, Ozy, vão acabar acusando seu blog de machismo e misoginia -, e que assina com o excitante nome de M. Valentine. 
 
Ela reconheceu, no meu pobre texto, metáforas, conexões, alegorias e outros elementos de linguagem dos quais eu mesmo nunca ouvi falar, quanto mais ter feito uso consciente deles. Uma vez que elogioso, gostei pra cacete do comentário e das observações dela.
Mas será que eu realmente escrevi tudo o que ela leu?
Eis o comentário : 
 
"Gostei do seu texto, Azarão. O humor aqui não apenas escancara o absurdo burocrático — ele desmonta o autoelogio coletivo com punhos de sarcasmo. Sua metáfora do 41‑bis como avião dormindo em marcha‑ré funciona como metáfora perfeita dessa engenharia narrativa de retrocesso que toma conta de discursos oficiais.
Você acertou em cheio ao conectar o tropeço institucional (mapa ao contrário, selo invertido) com uma cultura política disposta a inverter sentido e lógica por conveniência simbólica. E fazer isso com a figura de Santos Dumont — patrão simbólico da engenhosidade nacional — foi provocação de primeira. Além disso, a associação com a Nau do quingentenário de Cabral que naufragou virou alegoria eficaz: a tentativa de monumento falhou por excesso de vaidade. Metáfora suficiente para turbinar qualquer conversa sobre memória seletiva. No fim das contas, o avião que corre em marcha à ré não voa porque foi desenhado para mostrar funcionamento, não para cumprir função.
E isso é mais Brasil do que gostaríamos de admitir."
 
E se quiserem ler alguns textos dela (garanto que vale muito a pena), é só clicarem na foto do perfil dela abaixo.
 

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7 Comentários

  1. Azarildo, meu amigo escritor e maluco assim como eu.
    Que bacana esse comentário dessa moça. Muito legal.
    Eu vi, uma vez o Mario Prata falar dessa história. Esses dias contei num grupo de quadrinhos do watsapp e um rapaz lá, que se acha muito inteligente, disse que isso era uma piada do Mario Prata.
    Eu perguntei se ele ouviu o Mario Prata falar que era piada, e ele respondeu que não. Mas que com certeza era.
    A gente que escreve está com a nossa bunda na reta o tempo todo.
    Uns elegiam e outros falam baboseiras.
    Tem gente que acha que nós escrevemos para eles. Pessoas que nem sabíamos que existiam.
    No Skoob tem uma resenha que uma moça fez do meu primeiro livro. Ela elogia, diz que é envolvente, criativo, que a prendeu na leitura, mas... Achou que eu sou um machista safado, porque a culpa de tudo que acontece é de uma mulher.
    Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.
    Mas talvez nem seja...
    Mas ela quase me mandou pra Maria da Penha literária.
    Mais um ótimo texto meu amigo.
    Não fique bravo quando eu te encho o saco, como fiz hoje no watsapp. Kkkkkkkkkkkkk.
    É porque você escreve muito vem.

    Um abraço Azarildo!!!

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    1. Rapaz, e quando foi que você me encheu o saco? Para com isso.
      Maria da Penha literária é ótimo.
      E pior do que acharem que escrevemos para eles, acham que escrevemos sobre eles.
      É de cagar. Mas num país de semianalfabetos, alguém nos ler já é um mérito.

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  2. Marreta, seu texto é como um tapa no queixo seguido de um abraço constrangido — começa desconfiado, mas termina apaixonado. E eu adoro quando alguém me lê com um olho fechado e outro arregalado.

    Tu entra pela porta da desconfiança nas críticas literárias com um pé na lama e outro no sarcasmo, como quem diz: “quem são esses que arrancam significados de onde o autor só deixou um suspiro?”. Mas, no fim, é justamente isso que faz o teu texto ser bom: tu entende que interpretação não é propriedade, é colisão. E às vezes, dessas colisões, sai algo mais bonito do que o que se pretendia construir.

    Quando tu pergunta se foi realmente isso que escreveu, eu te devolvo com outra: foi mesmo você quem escreveu esse texto ou ele te escapou pelas costelas numa madrugada distraída? A arte, às vezes, é menos sobre controle e mais sobre vazamento. O autor escreve. O leitor infiltra. E quando a infiltração é boa, como essa tua crônica, ela transforma um texto sobre um avião que dá marcha à ré em uma tese sobre o Brasil que se exibe enquanto afunda.

    Mas não se engane, Marreta: a crítica boa não é a que explica o autor — é a que o perturba.

    Obrigada por me ler, mesmo torcendo o nariz. A gente se encontra nesse beco chamado blogosfera, onde o que importa não é a paisagem, nem a Glória, nem a baía — é o que cada um vê. E o que eu vi em você foi um cronista que sangra ironia com elegância. Não estrague isso tentando parecer são.

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    1. Que boa surpresa, nem sabia que você passeava por aqui no Marreta.
      Como você escreve bem... além dos textos lá no Ozy, você escreve outros tipos de coisas, poemas, poesias etc? Porque sua prosa é poética pra cacete.
      "um tapa no queixo seguido de um abraço constrangido", "ou ele te escapou pelas costelas numa madrugada distraída?" . Excelente.
      Sim, espero que continuemos a nos esbarrar pelos becos e vielas escuras da blogosfera.
      Eu, tentar parecer são? Até já desisti.

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  3. Ela realmente escreve bem. De vez em quando, comenta meus textos também.

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  4. "No poema, fica claro o estado de melancolia do autor". Pronto, eis a explicação. Mas como produzir nas academias brasileiras se não for enchendo linguiça?
    Há muito tempo não ouço falar do Mário Prata. Provavelmente recolheu-se devido à idade avançada.
    M.Valentine deve ter jogado seu texto numa IA e pedido uma "análise". Sei lá...
    Abraços

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    1. Pelo que li dos textos dela lá no Ozy, creio que ela tenha mesmo elementos para ter escrito o comentário. E não apenas creio, eu quero crer. Quero acreditar que ainda exista quem pratique a arte da boa escrita.
      Abraço.

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