Nina Seis Vidas

Como é ato dos mais comuns, dos mais triviais e corriqueiros, dificilmente, ou mesmo nunca, são percebidos os riscos inerentes a ele. "Ter uma criação", como diziam os antigos, é diligência das mais temerárias.
Tomar para si a responsabilidade de cuidar de uma cria, de conduzir um ser em formação, seja ele um cão, gato, jabuti, pato, marreco, porco, calopsita ou gente é decisão das mais arriscadas; desajuizadas, até. Se fôssemos pensar bem, poucos se disporiam a tal.

Contudo, nós não somos uma espécie notadamente reconhecida por nossa capacidade de ponderar antes de agir. A partir do momento em que nos colocamos a andar apenas sobre duas patas (há uma instabilidade e uma insegurança imensas na postura bípede), nós, simplesmente, passamos a racionalizar, a banalizar os riscos que nos cercam e a seguirmos em frente como se eles não existissem, a contarmos com a sorte. Assim, o planeta tem hoje mais de 8 bilhões de pessoas e os animais de estimação, os pets, estão em exponencial expansão nas residências.

E nada, a não ser tudo o que o Lula fala, pode ser mais falso que a expressão "na segurança do lar". Nossas casas são verdadeiras armadilhas armadas por nós mesmos. Campos minados de possibilidades de desgraças cotidianas. Com minas enterradas por nós mesmos e por entre as quais, sem mais nos lembrarmos de suas localizações e até de que as plantamos, passeamos tranquilos, caminhamos no escuro.

Os utensílios de cozinnha, por exemplo. Em mãos hábeis, guardam um potencial bélico de fazer inveja a Putin; em mãos inábeis e desastradas, mais ainda.

Os armários de produtos de limpeza, então. Tudo ali é tóxico - só não tão tóxico como ser macho nos dias de hoje. Com um pouco de conhecimento de química, pode-se fabricar uma bomba caseira com eles; sem nenhum conhecimento de química, ferir-se ou envenenar-se gravemente.

Um simples quadro pendurado na parede, um inofensivo lustre ou um ecológico vaso de samambaia presos ao teto, podem, de uma hora pra outra, despencar e racharem alguma cabeça distraída.

Ter criação em ambiente tão hostil e tão bem camuflado de hospitaleiro é fonte constante de preocupações, de tudo bem guardar, esconder, manter fora do alcance das crias. E de eventuais sustos, também.

O susto da vez ficou, nesta semana, por conta da gata Nina, uma felina tricolor de oito ou nove meses de idade e, de longe, a gata mais espevitada, endiabrada e arteira que eu já tive, ou como querem fazer que se diga hoje em dia, de quem eu já fui tutor. Gatos, ainda mais quando novinhos, são curiosos, mexem e fuçam em tudo, mas a Nina ultrapassa todas as escalas. Não à toa, antes de ser adotada por nós, havia sido devolvida já por duas famílias, o que é uma maldade.

Antes do ocorrido, uma necessária digressão.

Há uns meses, a esposa encasquetou que nosso filho está com o tal e na moda "déficit de atenção", o TDAH, para os íntimos, por conta de uma queda em suas notas escolares a acontecer com certa frequência.

Eu, que passei quase 30 anos em sala de aula como professor, sei bem quando alguém não consegue prestar atenção nos estudos, quando tem real dificuldade de aprender, ou quando, simplesmente, a pessoa não tem interesse em aprender, não se esforça minimamente para isso. 

Tentar verdadeiramente estudar, preocupar-se genuinamente em aprender e não conseguir se concentrar é uma coisa. Não se preocupar, nem pegar num livro ou num caderno para tentar é outra, muito diversa. 99%  dos déficits de atenção diagnosticados, podem acreditar, são tão-somente déficit de interesse, de compromisso com a escola.

Desde suas primeiras letras, sempre acompanhei de pertíssimo a vida escolar do meu filho. Estudei com ele para as provas incontáveis vezes. Ensinei-o a estudar. Sei que ele se concentra e aprende muito rápido, quando o assunto lhe interessa. O que vem acontecendo, e não que não deva ser combatido, e eu combato, é que ele vem manifestando grande desinteresse por certos conteúdos curriculares.

Ele se concentra e se sai muito bem nas notas, por exemplo, em Matemática e Ciências. E tem atenção, e notas, tendendo a zero em História e Geografia. TDAH seletivo? Ora, vão à merda. O que sempre martelo em sua cabeça é que, gostando ele ou não de uma matéria, o mínimo ele tem que cumprir. E ponto. Que escola é obrigação, não passatempo ou diversão, os quais podemos optar por fazer ou não. E fim de papo. Que, ao longo da vida, ele terá muito mais obrigações chatas a cumprir do que atividades prazerosas a desfrutar.

No entanto, como santo de casa nunca fez milagre e como o parecer e a palavra de um ex-professor calejadíssimo - e pai do adolescente em questão - não valem porra nenhuma frente aos de uma psiquiatra que não sabe nada sobre meu filho e que o diagnosticará em uma consulta de 30 minutos, acabei cedendo às suspeitas da esposa e meu filho foi levado à consulta.

O diagnóstico foi o óbvio e o esperado. E nem poderia ter sido diferente. Se você leva um adolescente sob suspeita materna de TDAH a uma psiquiatra especialista em adolescentes com TDAH, a dita cuja iria diagnosticar o quê? Virose?

Da mesma forma que se você for a um oncologista com um furúnculo na bunda, ele afirmará se tratar de um tumor em estágio IV.  Além disso, médicos ganham das farmacêuticas para prescreverem seus remédios. Se não há a doença, as farmacêuticas criam os remédios. Se não há os doentes, os médicos os inventam. Tenho um amigo que trabalha na área e diz que não são raros os médicos que ele visita e que recebem vários mimos das farmacêuticas, como viagens de fim de ano etc.

Enfim, começou ele, então, a ser "medicado" com a popstar Ritalina. Claro que não estou satisfeito com isso. Abri a guarda temporariamente, apenas. Sei que a droga não alterará os próximos resultados dele na escola, sei que ele só vai em frente nessas matérias na base de muita cobrança, de muita falação, de muita pegação no pé. 
Nenhuma droga fará ele se interessar por História ou Geografia - a vigilância terá de continuar a ser a mesma -, assim como nenhuma panaceia, ainda que servida no Santo Graal, faria com que eu me interessasse por pedagogia. Nunca conseguiu ler por mais que 10 ou 15 minutos um texto pedagógico na faculdade e tirava sempre 9 0u 10 em Bioquímica e Biofísica, a exemplos. Eu também tenho TDAH?
Esperarei pelos resultados dos próximos bimestres e voltarei a contra-argumentar, a tentar colocar meu ponto de vista.

Agora, voltando à gata Nina. Posto o acima, todos os dias, antes de sair para o trabalho, pego o frasco do "remédio", retiro uma cápsula e, uma vez que período de férias escolares, a levo para que ele a tome na cama e volte a dormir.

Nesta quarta-feira, porém, eu precisava lhe passar umas instruções mais detalhadas sobre uma série de tarefas para ele realizar durante o dia. Assim, não levei a cápsula até ele, apenas a retirei do frasco e a deixei em cima da mesa da sala para que ele a tomasse junto ao seu café da manhã.

Quando ele foi pegar o remédio, lá estava a Nina em cima da mesa, com cara de culpada. E cadê a Ritalina? Virara petisquinho de gata. Em cima da hora para ir para o trabalho, só consegui pensar em induzir o vômito na bichana. Lembrei que uns dias antes, ao lhe injetar 2 ml de um vermífugo líquido goela abaixo, ela logo vomitara tudo o que tinha no estômago.

Rapidamente, a imobilizei com uma toalha velha e administrei-lhe mais 2 ml do vermífugo. Saí para o trabalho e pedi a meu filho que ele não voltasse a dormir, que ficasse de olho na Nina, para ver se ela vomitaria o remédio ou, caso não, se ela começaria a apresentar sinais de intoxicação. E, com eles, a urgência de correr à veterinária.

Babar, revirar os olhos, ter tremores convulsivos, aumento da temperatura corporal etc. Que ele ficasse atento a qualquer alteração.

Do trabalho, fui me comunicando com ele e monitorando remotamente o estado da Nina. Ela engolira a Ritalina perto das 7 horas. Até às oito, oito e meia, nada. Nem vômito nem qualquer alteração de seu estado. Então, a partir daí, a Nina começou a manifestar um comportamento frenético. Passou a correr desenfreadamente por todo o apartamento. A pular sobre todos os móveis, a derrubar para o chão tudo o que estivesse sobre eles e se interpusesse em seu alucinado caminho, a escalar as costas do sofá e as cortinas. Não parava. Não dormia.

Ficou ligadona. Trincadaça. E eu sempre a perguntar pelos sintomas físicos de envenamento, que não sobrevieram, felizmente. Por volta das 13 h, a notícia tranquilizadora, a Nina sossegara. Comera, bebera e estava a dormir. A ressonar profundamente, como é de uso dos gatos. Voltara ao normal.

Não tenho dúvidas : Nina perdeu uma de suas notórias sete vidas, usou-a para passar à próxima fase, feito um personagem de videogame. Passarei a chamá-la de Nina Seis Vidas. Ou de Ninalina. A Nina (quase) levou meu sorriso, no sorriso dela, meu assunto...

A ser verdadeiro, o ditado "gato escaldado tem medo de água fria", Nina deveria correr a se esconder embaixo da cama ao menor sinal de alguém manipulando um frasco ou uma cartela de remédios, certo? O caralho! Não a Nina. Que, aqui em casa, nunca teve bicho normal.

Nos dias seguintes, logo pela manhã, assim que ela ouve o barulho que faço com o frasco de comprimidos, ela sai de onde estiver e pula sobre a mesa, para ver se lhe sobra mais algum. Olha pra mim como a dizer : Mais uma dose? É claro que eu tô afim.
Ficou viciadona em Ritalina, a Nina. Para ela, ouvir o chacoalhar dos comprimidos no frasco provoca o mesmo efeito que o tilintar das pedras de gelo num copo de uísque para o bebum. Nina, agora, não pode mais ouvir, como dizia o personagem Tavares do Chico Anysio, o "guizo da cascavel", que já fica toda ouriçada e se salivando de vontade.

Gata preta, eu já tive. Tarja preta é a primeira!
Pãããããããta que o pariu!!!!!


Nina, nesse exato momento, em cima do caderno em que escrevi este texto antes de digitá-lo aqui.

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