Uma Drágea de 15 mg de Mim

Das entrelinhas
Das laudas amareladas
De um livro muitas vezes relido,
Grifado, sublinhado,
Com anotações nas margens e nos rodapés
E dos sulcos arados e hoje inférteis
Do terreno erodido de um velho LP,
Tu tomarás
Um gole de água fresca de moringa de mim.

Dos efeitos e enredos mambembes
De um filme cult B,
Do facho de luz empoeirado
Do projetor de um extinto cineclube,
Do ingresso perfurado que guardaste de O Veludo Azul
E dos bottons e dos copos vazios de cerveja
Que preservaste dos shows de rock,
Tu puxarás
Uma longa e profunda tragada de mim.

Dos túneis do tempo
Que são tuas gavetas trancadas à chave,
Das minhas cartas,
Dos meus poemas a ti,
Dos cartões-postais e dos carimbos dos passaportes
De nossas viagens à Atlântida e à Bagdá
E dos teus sapatos vermelhos de Dorothy
Que
Em uníssono aos meus tênis de Hermes
Tantos paralelepípedos já galgaram,
Tu emborcarás,
De uma só vez,
Uma garrafa de vinho tinto de mim,
Do meu sangue pinot noir.

Dos nossos cafés em Buenos Aires e Istambul,
Dos meus cafunés de macaca-mãe a catar piolhos em macaco-filho,
Da geleia real das barras de cacau albino
E dos nossos planos infalíveis,
Das nossas conjurações e inconfidências nunca levadas ao cadafalso,
Obterás teu escafandro e teus cilindros extras de oxigênio
Para quando
Te fores difícil respirar.

Fico,
Agora e para sempre,
Em ti
Como um amor amortizado,
Mortiço de lume de lampião,
De gato castrado,
Amor de agasalho velho de moletom.
Amor do qual,
Volta e meia,
Tomarás uma drágea de 15 mg de mim,
Para te ajudares num sono mais tranquilo,
Para te desligares um pouco da vida.

Não mais
Como te cheguei um dia :
Como um amor
Que tanto quiseste
Para continuares a viver.

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