Pequeno Conto Noturno (94)

21h42. Rubens entra a passos largos no supermercado cujas portas se fecham às 22h00. É acompanhado pelos olhares de desgosto dos operadores de caixa, sempre a torcer pela ausência de retardatários feito Rubens. Mas eles sempre aparecem. A loja fecha sua entrada às dez da noite, mas os funcionários só largam do batente depois que o último dos clientes a entrar tenha feito suas compras e ido embora. Rubens já trabalhou em função correlata, sabe da frustração que é a chegada de um atrasadinho, sabe que poderá adiar o descanso de algum deles em excruciantes minutos. 
Por isso, Rubens tem por hábito não deixar as compras do mercado para a última hora.  Por isso, os passos ainda mais céleres que os já de costume; pretende pegar rapidamente o que lhe mandaram em missão e atravessar a boca de um dos caixas antes das dez badaladas noturnas. Por vontade própria, nem estaria ali. Virna, no entanto, lembrou-se precisar "com urgência" de um maço de espinafre e uma peça de ricota. E lá foi Rubens.
Espinafre na cesta, Rubens, ao dobrar a esquina do corredor dos frios atrás da ricota, dá de cara com Yrina. Um dia desses, num desses encontros casuais... Yrina, sim, especialista em deixar as coisas para a última hora.
Década e meia, mais ou menos, sem a ver. Praticamente, desde que começou a morar com Virna. Coabitação, de início, informal e despretensiosa e que acabou por se formalizar, oficializar.
Um encontro por várias vezes imaginado por Rubens, roteirizado em inúmeras versões durante suas caminhadas, em seus momentos de ócio etílico. Encontro, porém, temido de uns tempos para cá. Temido por não querer mostrar a Yrina os andrajos que hoje é do homem que um dia foi, um espólio da guerra travada - e sempre perdida - contra si mesmo, alguém por quem ela jamais poderia se reapaixonar. Temido por não querer que Yrina perceba que ele sempre fora uma poça de lama a refletir o céu, um camaleão larápio das cores dela.
Mas o encontro com Yrina se deu.
Estranhamente - por susto ou por simples falta de forças -, Rubens não se apega e não se refugia às palavras, seu porto sempre seguro. Estranhamente - pela surpresa ou pelo simples cansaço -, Rubens rende-se ao ato físico.
Abraça Yrina. Enlaça-a feito um polvo. Abraça forte. Forte, não : fundo. Como a cabeça a afundar em travesseiro de paina. Uterino. Como sempre imagina que seja a alcova da Morte.
Encilha-a. Sente-se também encilhado por ela.
Yrina ganhara uns tantos quilos; ele também. O cabelo dela : mais curto, com poucos sinais de branco, e nenhum de tintura; os dele : quase que só cinza, um cinza de tons sujos, de rescaldo, uma paleta do branco da idade com o amarelo queimado do sol.
As sobrancelhas dela : sempre grossas e bem delineadas; a barba dele : disforme, assimétrica e desgrenhada, um novelo de lã saído de uma orgia de gatos.
O cheiro dela : o de sempre, bergamota recém-descascada, café recém-coado e uma suada noite de rock'n'roll. Rubens tem medo do cheiro com que possa estar, mais medo ainda da falta de cheiro com que possa estar, aquele odor de nada com que os velhos vão ficando, odor de mobília.
Ele sabe-a avermelhada. No colo, no pescoço, nas faces. Sintomas inequívocos e indiscretos da excitação dela. Em outros tempos, o pau teria-lhe subido ao umbigo; em outros tempos... Mas sente-se ereto, ainda que se saiba murcho.
Rubens aspira a nuca de Yrina. Ela lhe alisa as costas, pressiona as costelas dele levemente com as unhas. Sentem-se represar algo indefinido dentro de si, algum volume, alguma presença. Que nem consegue respirar nem morre e sucumbe por asfixia. Algo convulso.
Desvencilham-se, seus braços interpondo uma distância de um ou dois palmos entre eles; seus olhares antevendo outra distância de década e meia. Ele passa os dedos em garfo pelos cabelos dela, juntos às têmporas. E beija-lhe a testa. É o limite a que se permite.
Por que, ao invés disso, beijar-lhe a boca e afagar-lhes os grandes peitos seria pecado tão maior, traição tão mais imperdoável?
- Dá tempo para um café ? - pergunta Yrina.
Não dava.
Virna precisava do espinafre e da ricota, com urgência.
 

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1 Comentários

  1. Narrativa tão envolvente quanto cotidiana. Entendo Rubens, imaginar e roteirizar encontros, vez ou outra, é meu hobbie. "Achei que era só comigo". Kkkkk

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