Setembro Amarelo (ou : o Suicídio Assistido do Ensino Público)

Ao longo de todo esse mês, a escola em que leciono abandonou, assumidamente e sem nenhum pudor, todo e qualquer resquício de atividade acadêmica que ainda pudesse subsistir por detrás da fachada do prédio onde está escrito que é uma instituição de ensino. Prevaricou, proposital e descaradamente, do dever sagrado de transmitir e perpetuar os rudimentos básicos das principais áreas do conhecimento humano.
Duas ou três professoras, de geografia, sociologia ou coisas parecidas, deram um tempo de falar mal da vida dos outros e, entre elas, sem perguntar a ninguém, decidiram envolver a escola num projeto coletivo do Setembro Amarelo. 
Odeio essas duas palavras. Projeto e, mais ainda, coletivo.
Frisaram, as tais, que não seria um projeto de prevenção ao suicídio, palavra que deveria, inclusive, nem ser pronunciada, mas sim uma iniciativa de valorização da vida. Senti-me como em décadas passadas, quando as pessoas não falavam a palavra "câncer"; diziam, fulano está com aquela "doença ruim", ou, beltrano está com c.a., como se a simples menção do nome pudesse atrair a moléstia para si. Agora, pelo visto, dizer suicídio parece ter o poder de acionar algum comando na cabeça da pessoa e levá-la ao autoextermínio.
Embora não tenha inclinações para tal ato, nada tenho contra o suicídio e o suicida. Já ouvi dizer que a única questão filosófica que vale a pena ser debatida é o suicídio. Não concordo. Acredito que a única questão filosófica que compensa uma noitada numa mesa de boteco é, justamente, a oposta : por que tanta gente ainda insiste em viver, aferra-se tanto à vida?
O revolucionário e vanguardista projeto das ociosas docentes consistiu em passar o mês inteiro a recortar, em cartolinas amarelas, figuras em forma de coração, de folhas de árvores, de lâmpadas, de mãos fazendo "joinha", de emojis com sorrisos idiotas etc e distribui-las aos alunos para que esses escrevessem nelas frases de motivação, de estímulo à vida, que mandassem seus recados a alguém que estivesse pensando em se matar. Frases de constranger qualquer para-choques de caminhão. Frases que, num primeiro momento, foram afixadas pelos murais, portas e corredores da escola. 
Para levar a cabo tão hercúlea tarefa, grupos de oito a dez alunos de cada sala, em horário letivo, independente da disciplina que estivessem tendo ou do professor que a estivesse a lecionar, foram recrutados e retirados de suas aulas para auxiliarem as tais.
Química? Biologia? Matemática? Para quê? De que isso servirá à vida do aluno? 'Bora recortar lampadinhas e coraçõezinhos de cartolina, que isso, sim, garantirá-lhes uma boa colocação no mercado de trabalho, no Enem, num concurso público.
Então, na segunda retrasada, 12/09, durante o intervalo, na sala dos professores, aos pacos, os recortes foram entregues aos professores presentes e orientado que cada um de nós os levássemos para a nossa próxima aula e os distribuíssimos entre os alunos, para que eles dessem a sua contribuição empática e humanitária aos aflitos e aos descontentes com a vida.
A adesão e o aplauso da professorada presente foram imediatos e quase que unânimes, choveram elogios à valorosa iniciativa. Pudera. É muito mais fácil se engajar em projetos e ações "sociais" do que dar aula, do que trabalhar. Não à toa, tanta gente quer a volta do alibabá Lula e seus quatrocentos ladrões.
Resolvido a passar despercebido nessa escola para a qual me removi no ano passado, depois de 18 anos em outra, e decidido em não recriar o mito e a lenda do enfant terrible que construí na anterior, peguei também do meu paco - fui agraciado com folhas de árvore - e, após o sinal, dirigi-me à minha sala, um terceiro ano do ensino médio.
Cheguei, domei e fiz calar os mais mal-educados, fiz a chamada e me pus a tentar falar seriamente do tal projeto e da importante tarefa que os alunos teriam à sua frente. Bem que eu tento seguir a manada, mas o personagem não desgruda de mim. Não consegui passar nenhuma credibilidade sobre a minha falsa crença no tal projeto, no meu engajamento. No meio da minha explanação, vi que três ou quatro alunos trocavam olhares e risos zombeteiros entre si. Assim que acabei, segurando o riso, um deles perguntou : e aí, professor, o que é que o senhor vai escrever na folhinha? 
Embora nem mesmo o maior filho da puta consiga dizer que minha aula não é boa (e é isso que me importa), tenho um público bem pequeno, poucos são os alunos que gostam de mim, mas esses são cativos, sabem exatamente no que eu acredito ou não. E é a esses a quem eu devo a minha honestidade profissional e intelectual.
Foi o que bastou. Também não me aguentei, ri e disse, vou deixar essa palhaçada aqui em cima da mesa e vocês peçam para o próximo professor fazer a atividade com vocês. E tasquei lá o teorema de Hardy-Weinberg.
O gran finale, ou, como se diz hoje em dia, a culminância do projeto se dará no encerramento do mês, nessa sexta-feira, 30/09. Os recortes serão retirados dos locais onde ficaram expostos durante o mês, amarrados a linhas e barbantes e dependurados num extenso varal instalado de ponta a ponta do pátio, formando uma grande cortina amarela de frases de autoajuda. Ouvi dizer que Paulo Coelho, Augusto Cury, Rubem Alves, Ana Maria Braga e Fátima Bernardes foram convidadas para a inauguração do varal, mas que, devido às suas agendas lotadas, foram obrigados a declinar do convite.
A "ideia" do varal é que os alunos, ao trafegarem (e traficarem) pelo pátio, atravessem a cortina e absorvam a energia positiva guardada nas frases ali escritas.
Pããããããta que o pariu!!!!!! Ateu não jura. Mas vou abrir uma exceção para jurar para vocês que não estou a inventar nada disso, é a mais pura e triste verdade.
Abaixo, um exemplo do que falei, frases em lâmpadas amarelas grudadas com fita adesiva na moldura do espelho de um antigo claviculário localizado em um dos corredores da escola. Borrei a minha cara na foto, de amarelo, claro.
Nas lâmpadas, se é possível ler coisas do tipo : "cuide de você", "olhe pra você com carinho", "você é forte, você é suficiente", "nenhuma tempestade dura para sempre" etc.
E um novo temor começa a me rondar. Mês que vem é outubro, Outubro Rosa. Será que as tais irão exibir as peitolas pela escola? Se as conhecessem, pensariam como eu : tomara que não, tomara que não.
Setembro Amarelo de valorização da vida é a puta que o pariu!!!
Setembro Amarelo, para mim, sempre remeteu ao amarelo da florada do ipê-amarelo, a belezura na foto abaixo, a florescer bem no pátio da escola, e pelo qual a maioria passa sem nem mesmo saber que ele ali está. 
Ao invés de ficarem a escrever imbecilidades em cartolinas amarelas, os alunos e também, e principalmente, as autoras do projeto deveriam ser expropriados de seus celulares e postos a contemplar o ipê-amarelo em flor. Se depois de um tempo a mirar tal beleza, alguém ali ainda quiser se matar, que se mate, ora porra.

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2 Comentários

  1. Muito bom!
    Seus textos tem um cinismo de um Olavo de Carvalho da série C... Eu entendo tudo isso. Fui professor, preferi abandonar a profissão e trabalhar isolado na Companhia de Saneamento do meu estado. Sem arrependimentos!

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