Carta de Desistência

A carta que reproduzirei logo mais, de autoria do uruguaio Leonardo Haberkorn, ex-professor universitário, escritor e jornalista, chegou ao meu conhecimento através do Blogson Crusoe, um dos inúmeros blogs do Jotabê - Jotabê tem mais blogs que Fernando Pessoa, heterônimos.
A carta é um triste relato de um professor que capitulou, que resolveu jogar a toalha frente à maior e mais nociva pandemia que já assolou a espécie humana. A do vírus chinês? Porra nenhuma. A dos telefones celulares. Para a qual, pelo visto, não há vacina, e, ainda que houvesse, não há quem se vacinaria.
O professor desistiu de competir com os celulares, de falar às paredes da sala, para alunos acéfalos.
Antes de publicar a carta, quero chamar a atenção para dois importantes pontos, que nos colocam num quadro ainda mais terrrível que o da carta.
Primeiro : ela é de 2015. Muito antes da pandemia do vírus chinês transformar os celulares no material escolar "oficial" da meninada.
Segundo : o desabafo nos chega do Uruguai. País que foi o primeiro colocado na América do Sul nas últimas duas edições trienais do PISA, a de 2015 e a de 2018. O PISA - Programa Internacional de Avaliação de Alunos - é aplicado em mais  de 70 países, de todos os continentes, PIBs e IDHs, e mede os conhecimentos básicos de idioma, matemática e ciências. O Uruguai foi o primeiro da América do Sul nos dois últimos PISAs. O Brasil, o penúltimo. Só "ganhamos" do Suriname. Você sabe onde fica o Suriname? Com que estados nossos ele faz divisa? A língua falada por lá? Não, né? O que só vem a confirmar a nossa colocação.
Imagine, então, como está uma sala de aula hoje, em 2022, e no Brasil.
E, finalmente, à carta :

"Depois de dezenas de anos lecionando, dei hoje a minha última aula nesta universidade. (...) Cansei de lutar contra os celulares, contra o WhatsApp e o Facebook. Eles me derrotaram, eu desisto, jogo a toalha. Cansei de falar de assuntos que me apaixonam diante de jovens que não conseguem tirar os olhos do celular e receber selfies.
 
É verdade que nem todos são assim. Mas há cada vez mais alunos desse tipo em todas as aulas. Até três ou quatro anos atrás, a proibição de usar o celular durante os noventa minutos de aula ainda surtia efeito — nem que fosse para que o aluno se sentisse culpado.
 
Isso acabou. Talvez seja eu... talvez eu tenha me desgastado e esteja cansado desse combate. Talvez até esteja errado. Uma coisa, porém, é certa: muitos desses jovens não têm consciência do quanto é ofensivo e prejudicial o que eles fazem. É cada vez mais difícil explicar como o jornalismo funciona para pessoas que não o consomem ou não veem sentido em se informar.
 
Esta semana na aula surgiu o tema da Venezuela. Só um aluno em vinte conseguiu explicar os fundamentos do problema. Só o básico, do resto ele não fazia a menor ideia. Perguntei se eles sabiam o nome do uruguaio que estava no meio da tempestade. Obviamente, nenhum deles sabia.
 
Perguntei-lhes se sabiam quem era o uruguaio Luis Almagro (secretário-geral da OEA). Silêncio. Por fim, do fundo da sala, uma jovem gaguejou: "Ele não é o Ministro das Relações Exteriores?"
 
 “O que está acontecendo na Síria?” Silêncio. (...)
 
“Qual partido é mais liberal, ou mais à esquerda nos Estados Unidos, os democratas ou os republicanos? Silêncio.
 
"Você sabe quem é Vargas Llosa?" Sim!
“Alguém aqui já leu um livro dele?" Ninguém.
 
Tentar conectar pessoas tão desinformadas com o básico do  jornalismo é complicado. É como ensinar botânica a alguém de um planeta onde não existe vida vegetal.
 
No exercício em que os alunos tiveram que sair para procurar uma notícia nas ruas, um deles voltou com esta notícia: “Jornais e revistas ainda são vendidos!” (...)
 
Existe um momento em que o jornalista funciona contra você. Porque você é treinado para se colocar no lugar de outras pessoas, cultiva a empatia como ferramenta básica de trabalho. Esses alunos ainda têm a mesma inteligência, simpatia e cordialidade de sempre, e a culpa dessa situação não é só deles. A falta de cultura, o desinteresse e a alienação não nascem por conta própria.
 
A curiosidade deles morreu aos poucos, a cada vez que um professor deixou de corrigir seus erros ortográficos. Aos poucos, lhes ensinaram que tudo tem mais ou menos o mesmo valor. E quando você percebe que eles também são vítimas, acaba baixando a guarda quase sem se dar conta.
 
Nesse momento o aluno mau é aprovado como mediano; o medíocre passa por bom; o aluno simplesmente bom, nas poucas vezes em que consegue uma boa nota, é celebrado como se fosse brilhante. Não quero mais fazer parte desse círculo perverso. Nunca fui assim e me recuso a ser.
 
Sempre gostei de fazer bem feito tudo que faço, com o melhor de minha capacidade. (...) Vejo rostos apáticos. Desinteresse. Um rapaz largado, olhando o Facebook. O ano inteiro foi igual. (...)
 
Silêncio. Silêncio. Silêncio. Nessas horas, o que eles mais queriam é que eu terminasse a aula.
 
Eu também."
Caso queiram ler um pouco mais sobre o desempenho do Brasil em provas internacionais:

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2 Comentários

  1. Desisti de ser professor já durante o meu estagio de regência exatamente por motivo semelhante. Percebi já naqueles dias, quantas plantas mortas eu estava regando.

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