Um Dia na Vida (11)

Sexta-feira. 05:52 h. Mal amanheceu, nesses dias já a flertarem com o inverno. O silêncio da manhã é eivado pelo barulho da emissão do gás carbônico liberado quando ele rompe o lacre do latão da cerveja.
Cedo demais para beber; o veredito unânime da moral rasteira e hipócrita do rebanho e dos bons costumes. Cedo para quem, cara-pálida? Um dos pontos da questão. Outro : ele não está bebendo, está comemorando. Ele poderia estar a soprar velinhas sobre um bolo enjoativo, ou a encher balões, ou a fazer churrasco com amigos; seria a mesma coisa, o mesmo conceito.
Prefere a cerveja : seu bolo, seus balões e os convidados de sua festa, todos juntos. E o único presente de que ele precisa.
Ao sair da passarela de concreto que o transpôs para a embocadura de uma praça malcuidada, ele dá o primeiro gole no latão. Levanta as vistas para o céu a enrubescer e o oferece ao primeiro raio de sol. Nem o sol, hoje, será capaz de tirá-lo do sério.
Ele conseguiu uma pausa de seu Inferno; não uma solução para ele, que essa não há, mas uma pausa de seu tormento, uma boa pausa, quase dois meses. Hoje, é o último dia de trabalho que a antecede.
Entorna, então, o latão com gosto. Uma velha, dessas que madrugam para lavar a calçada, a levar o seu cachorro afrescalhado para cagar na praça, o olha com severas reprovação e condenação. Não estivesse a levar a sua ratazana peluda pela coleira à sua mão direita, teria persignado-se, feito o pelo-sinal.
Ele ri, de canto de boca. Seu característico e quase que imperceptível orgasmo facial. E se lembra de um certo dr. House, que apostara, em certa feita, com seu amigo e grilo falante Wilson, que não era um viciado, que poderia tranquilamente passar uma semana sem o seu Vicodin, sem padecer de nenhum efeito de abstinência.
House, como macho das antigas que é, aguentou firme os sete dias da aposta, mas não sem passar por excruciantes martírios, tanto de ordem física como psicológica. Chegou a quebrar propositalmente os dedos da própria mão com o pistilo de um gral para que a dor da fratura se sobrepusesse à dor da abstinência. Findo o tempo da aposta, ele não teve outra opção que não fosse conceder a vitória a Wilson.
- Admito que sou um viciado -, disse ao amigo.
Wilson, inocente, puro e besta feito todo humanista, feito todo aquele que acredita no ser humano e na possibilidade de sua mudança e redenção, disparou o velho clichê :
- Bom, admitir que se tem um problema é o sempre o primeiro passo.
No que House :
- Eu admito que sou um viciado, não disse que isso é um problema.
Grande Gregory House, pensa ele. Entorna o resto do latão e o descarta, o deposita na forquilha de um oitizeiro plantado à beira do meio-fio.

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2 Comentários

  1. Seria um conto? Seria uma crônica? Pouco importa a classificação literária. Só sei que é um excelente texto. Muito bom mesmo.

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  2. Pois é. Quando pensei no texto, a caminho do trabalho, eu fiquei indeciso em qual das três seções do blog ele melhor se encaixaria. E acabei optando, inicialmente, pela Um Dia na Vida. Publiquei por volta das 20h30 da sexta. Mas, então, eram cerca de 01h30 da manhã já do sábado, eu com umas boas doses de vodka com coca-cola já na cabeça, resolvi publicar o mesmo texto também nas outras categorias.
    Ouvimos falar muito em várias versões da mesma história. Digamos que esse texto seja três histórias da mesma versão.

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