Pequeno Conto Noturno (93)

03h07. Rubens sempre gostou de escrever cartas. Hábito que manteve, de forma contumaz, da adolescência até balzaquianas idades. Escreveu, enviou e recebeu em resposta mais de uma centena delas. Principalmente para o primo Leitinho e para o amigo Margá; algumas outras dúzias, talvez, para pequenos casos amorosos. Guarda ainda todas as que recebeu, em caixas de papelão protegidas por sentinelas de naftalina; tem até cópias de um tanto delas que enviou.
O que ninguém sabe é que Rubens já escreveu um sem-número de cartas que nunca foram enviadas, nunca foram entregues aos cuidados dos serviços postais. E ainda as escreve, amiúde. Tem a todas guardadas, também. Cartas que nunca foram sequer envelopadas, que dirá terem chegado aos olhos de quem foram dedicadas. Ele nunca as contabilizou para efeito de comparação, mas acredita serem em maior quantidade do que as que foram seladas e remetidas.
Ele as chama de as Pequenas Cartas Noturnas, e elas são a principal seção de sua particular Biblioteca do Sonhar, paralela à dos livros sonhados e nunca publicados.
Rubens as escreve, talvez, na esperança de que algum mensageiro noturno as façam chegar, se não às mãos, ao menos aos ouvidos adormecidos de seus destinatários. Talvez Hermes, talvez o corvo Matthew; melhor ainda se a coruja que pousava e feria de sabedoria o ombro de Palas Athena. Mas sabe que não. Mensageiros dos deuses estão cagando para as vontades e os sonhos dos mortais (assim como os próprios deuses). Até, às vezes, tem a impressão de que recolhem suas missivas, porém, nunca as entregam em seus corretos CEPs. Espalham-nas pelas ruas, para mais rápido esvaziarem suas sacolas e largarem mais cedo do eterno batente.
03h11. Rubens reabastece o copo com rum e se põe a escrever mais uma de suas pequenas cartas noturnas, mais uma que nunca receberá o carimbo dos correios, mais um delírio a ser preservado em naftalina nas estantes do Sonhar.
"Hoje, por acaso, como tudo de um pouco melhor que acontece na minha rotina, encontrei com Isaac e Odete. Não os via desde que saí de lá. Dois anos e pouco, portanto. Que pareceram menos, talvez pela pandemia do vírus chinês. Talvez por lembrar deles, de você, constantemente. Temos uma profissão de merda. Transformada em merda, propositalmente. Salvam-se dela os bons amigos que conseguimos recolher pelo caminho nada suave.
Paramos para um café. Café, café, é claro, você bem me conhece, tomaram eles. Pareceram-me que estão bem, tão bem quanto duas pessoas juntas há mais de vinte anos podem estar. Falamos sobre as boas coisas passadas; e de tristes atualidades. Falaram do inferno que ainda está por lá e me perguntaram a respeito do inferno para o qual me mudei. Disse-lhes que a aparente diferença é que, no inferno onde estou, o Capetão-Mor, ainda que o vejamos sempre a circular pelos corredores, não nos presta atenção, não nos fustiga o rabo com o tridente em brasa da burocracia. Mas que os condenados e as danações são os mesmos. Outra praia, mesmo mar, como disse o filósofo Gessinger.
E quase nos despedimos sem que eles tivessem falado sobre o que eu mais queria ouvir, de você. Durante todo o papo, fiquei a pensar em alguma maneira sutil de conduzir o assunto até você. Sutileza, eu? Já viu que não deu, né? Porém, quando estávamos já de pé, de saída, a acertarmos nossas contas no caixa, o Destino, por clemência ou crueldade, fez você surgir da boca do Isaac. Fiquei sabendo que você também não está mais por lá. Primeiro, fui eu, a abandonar o navio; agora, você.
Dizem muito da covardia dos ratos, os primeiros a abandonarem o navio aos primeiros sinais de naufrágio. Se por covardia, dizem da inteligência e da fina e crua percepção de uma realidade irreversível, admiro muito, pois, a covardia dos ratos.
Primeiro, fui eu. Agora, você. Deveras, aquele lugar perdeu mesmo todos os seus encantos e autenticidade. Todas as suas reservas de inteligência e de originalidade. Quem contará a história de lá? O Randolfo e a Concepção? Pãããããta que o pariu!!! A Babete, aquela cuzuda acéfala, que, também fiquei sabendo durante o café, parece ter assumido algum cargo uma gilete de espessura acima às custas de muito puxar o grelo da manda-chuva? Pããããta que o pariu!!!, de novo.
Aliás, tenho aqui, há algum tempo, um livro que muito gostaria de lhe entregar, mas não vejo vias confiáveis para isso. Sei que se você soubesse disso, perderia o sono de tanta curiosidade, tomaria - inutilmente - tonéis de chá de erva-cidreira para desfazer a ansiedade em nó górdio no seu peito.
Para a sua sorte, nunca saberá da existência do livro nem da minha vontade em lhe presenteá-lo; para o seu azar, nunca o terá, e é, de fato, um belo livro. Nesse caso, no seu caso, os pratos da balança do azar/sorte pendem a seu favor. Para a minha sorte, ele permanecerá comigo (repito, ele é um belo livro), e eu ficarei aqui a imaginar dezenas de histórias e de enredos de como fazê-lo chegar até você; para o meu azar, todos os meus planos são falíveis, e a entrega do livro e o nosso encontro nunca se darão. Só eu saberei da improvável possibilidade. Ou da provável impossibilidade? Nesse caso, no meu caso, nem é necessário dizer para qual lado pendem os pratos da balança do azar/sorte."
03h49. Rubens assina a carta e tampa a sua caneta Bic verde - as pequenas cartas noturnas, sempre as escreve em verde e/ou roxo. Mais uma dose e vou me deitar, decide Rubens. Dormir? Veremos.

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2 Comentários

  1. Rapaz, o livro é segredo. E você não fez nada errado na configuração dele, não. Acho que ele não atualiza pra ninguém que o tenha posto numa lista. Isso é devido à censura do Google. O aviso de conteúdo adulto (ou confidencial) não foi uma opção minha, foi imposta pelo Google, que julgou que o meu blog tem conteúdo impróprio e/ou duvidoso. Com isso, ele foi retirado também dos mecanismos automáticos de busca do Google e também não atualiza em lugar nenhum.

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  2. No caso do Kleiton, ele optou por configurar o blogue como de conteúdo adulto, existe essa opção nas configurações. No meu caso, o Google decidiu por mim, e ele faz o serviço completo. Faça um teste, se quiser : vá ao google e digite "blog do neófito" e verá que ele aparece normalmente nos resultados da busca; digite depois " a marreta do azarão" e só o que você encontrará são replicas do original no wordpress e tumblr, que eu mantenho para caso um dia o Marreta seja definitivamente derrubado.

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