Impressionantes são alguns dos caminhos evolutivos - antes insuspeitos e mesmo inverossímeis - trilhados por certas espécies quando postas frente à Extinção, o Ragnarok Darwiniano. Quando a água lhes bate às bundas. Quando as únicas opções são ou morrer, ou se virar nos trinta. Nos trinta mil anos de evolução; comparativamente, tempo mais irrisório que os nossos trinta segundos do relógio.
Ao pensarmos nas abelhas, logo nos vêm à ideia aquele insetozinho faceiro e bucólico, amigo das plantinhas. Imaginamo-as a voar leves e alegres por entre as flores, numa eterna celebração à fecundidade, levando o pólen (a porra vegetal) de uma flor-macho ao gineceu no cio de uma flor-fêmea, num lascivo triângulo amoroso, num libidinoso ménage à trois.
Quem poderia supô-las umas carniceiras? Quem as suporia fazendo da carne podre, néctar? Umas hienas de celofânicas asas? Uns doces urubus?
Pois estas abelhas existem. São as abelhas-abutre, como estão a ser chamadas por uma equipe de cientistas estadunidenses da Universidade da Califórnia, que estão a estudá-las e a tentar compreender as adaptações que as permitiram desfrutar de tão putrefato cardápio.
Entre as modificações sofridas por essas abelhas está o desenvolvimento de um "dente" a mais, tornando suas mandíbulas serrilhadas mais aptas a destrinchar a carne podre. Mas essa está longe de ser a principal e mais surpreendente adaptação das abelhas-abutre. A grande chave do sucesso evolutivo desta espécie se encontra em suas entranhas, em seus intestinos. A flora bacteriana da abelha-abutre, o seu microbioma intestinal, é composto por bactérias muito diferentes dos das abelhas convencionais, e muito semelhantes aos das hienas e outros carnívoros, que não só permitem que as abelhas-abutre digiram a carne podre como também as protege de possíveis agentes infecciosos na carne decomposta.
Os cientistas acreditam que tal adaptação tenha se dado a partir de um período de grande escassez de néctar, em que essas abelhas, pequenas e sem ferrão, teriam perdido a competição por alimento para abelhas maiores e mais bem armadas, o que as obrigou a repensarem a sua dieta, os seus hábitos alimentares.
E dá até para fazer melzinho do chorume dos cadáveres. Nas abelhas "normais", existe uma enzima, a invertase, que converte a sacarose do néctar em glicose e frutose, os principais componentes do mel. As abelhas-abutre desenvolveram uma enzima (a reportagem que li não cita o nome da tal) que faz o mesmo com o líquido mefítico que elas recolhem dos cadáveres. Na colmeia, a carne podre e o mel ficam reservados em compartimentos separados e isolados, não há a contaminação do mel.
Os cientistas acreditam que, inicialmente, um pequeno grupo dessas abelhas tenha se arriscado a consumir cadáveres. Tendo o experimento logrado êxito, esse grupo foi passando a informação para outras colmeias e para as gerações seguintes.
Intrigado com a questão, eu, um CSI da Natureza, saí em uma pesquisa de campo. E constatei que os cientistas estão certos, ou quase certos, parcialmente certos. Descobri que não foi um grupo pioneiro de abelhas a se arriscar em nova dieta, a se aventurar em decompostas carnes. Não foi um grupo. Foi UMA abelha. Uma única abelha, a responsável por salvar o seu povo da extinção.
Consegui encontrar e falar com essa abelha visionária. O acesso a ela não foi tarefa fácil. Hoje, ela é uma espécie de pop star, de celebridade da colmeia. Cheia de vontades, manias, cerimoniais e protocolos. Essa abelha, antes uma humilde proletária, de quem dizem, as açucaradas e más línguas da colmeia, até ter cortado propositalmente metade de sua asa esquerda para tentar se aposentar, foi a primeira operária a ser alçada à posição de abelha rainha, por salvar o seu povo da fome.
Tal ascensão, inclusive, deflagrou o início de um levante das massas, gerou o embrião de uma luta de classes, começou a se dizer de direitos trabalhistas, de folgas remuneradas, de invasão a colmeias improdutivas, da formação de sindicatos etc. Durou pouco, a insurreição. O Zangão-Mor, o único a possuir recursos e instrumentos para tal, bateu com o pau na mesa e acalmou os ânimos da turba. Distribuiu lá uns sanduichinhos de mortadela-real e conduziu a plebe rude de volta ao seu devido lugar.
Acertada a entrevista e o seu horário, a abelha me recebeu em seu confortável e opulento favo triplex, de frente para um mar de lírios e lavandas. Pediu que eu me sentasse e me serviu uma dose do mais puro melaço cubano. Perguntei-lhe, então, de onde viera a ideia de se alimentar de cadáveres, de carne podre. Respondeu-me:
"Era o fim de um dia de pobre colheita de néctar, os campos todos secos, quase nenhuma flor nos pés, um estio danado... tudo culpa das mudanças climáticas e do agronegócio capitalista e opressor. Eu não tinha atingido nem metade da meta estabelecida pela Rainha-Dilma, que já prometera dobrá-la para o dia seguinte. Decidi, então, para cumprir com minha cota, procurar por um enterro, por um funeral, ambientes sempre fartos de flores. Dei azar. Caí num velório de pobre. Tudo flor de plástico. Tudo arranjo de R$ 1,99.
Já escurecia e não havia mais o que eu pudesse fazer. Dei-me por vencida. Já estava voltando de corbículas vazias para a colmeia. Foi quando veio a salvação. Foi quando ouvi uma pessoa a carpir e a se lamentar sobre o caixão do defunto : "que tragédia, tão moço, tanta vida pela frente, em plena flor da idade...".
Flor? Eu ouvira flor? Aí, me deu o estalo, o insight! Não custava tentar. Provei o defunto, gostei, vi que dava para fazer um melzinho e espalhei a notícia para as outras abelhas. O resto, é história."
Pedi-lhe mais uma dose do melaço cubano e fiz uma última pergunta : - É verdade que esse dia, que essa data da epifania que a senhora teve, virou feriado nacional, que é o único dia do ano em que não se trabalha na colmeia? Que é comemorado com paradas militares e ganhou até um nome imponente?
- Sim, é verdade - começou ela -, essa data virou feriado nacional e recebeu o nome de O Dia do Apocalipse Zum-Zum-Zumbi.
Fim da entrevista.
Pããããããããta que o pariu!!!!
1 Comentários
Bee-zarro!! (a piada é do meu filho)
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