"Os pontos mais extremos do espectro político e ideológico têm a desagradável tendência de se encontrar, morrendo juntinhos n'um abraço de afogados - se não pelo conteúdo exato do que defendem, ao menos pelo teor estapafúrdio de seus credos.
Cristãos conservadores adeptos do literalismo bíblico (a crença de
que cada sílaba da Bíblia é literalmente verdade, em todos os aspectos),
por exemplo, acreditam que o ser humano surgiu há poucos milhares de
anos, plasmado pela ação direta de Deus, sem qualquer relação com as
demais formas de vida, único ocupante do trono da Criação (logo abaixo
do Senhor, é claro). Para simplificar, chamemos essa crença de
"criacionismo da Terra jovem" (já que seus adeptos tampouco aceitam os
4,5 bilhões de anos da idade real do nosso planeta).
Absurdo, dirá o leitor. E,
no entanto, talvez mordidos por algum tipo de inveja freudiana de seus
oponentes da extrema direita, ateus da esquerda radical frequentemente
aderem a uma concepção ideológica que, apesar das diferenças
superficiais, funcionalmente diz a mesma coisa que o literalismo
bíblico. "Tudo no ser humano é construção social", pregam eles. "Não
existe natureza humana. Somos infinitamente maleáveis." Que me desculpe a
massa de crentes de ambos os lados, mas isso não passa de criacionismo para ateus.
Convém explicar um pouco melhor onde vejo esses dois extremismos se encontrando. Numa palavra (OK, em duas): excepcionalismo humano. Ou seja, a fé segundo a qual o Homo sapiens
corresponde a tamanha exceção entre os demais seres vivos que não faria
sentido aplicar as mesmas regras que valem para o resto da Árvore da
Vida.
Para os criacionistas "de raiz", os da Terra jovem, é por decreto divino que somos esse ser fora de série; para os neocriacionistas
ateus, a invenção da cultura humana nos permitiu um ecossistema
simbólico de nossa própria lavra, liberto das amarras da biologia.
Bastaria apertar os botões certos na hora de configurar nossas
estruturas sociais, políticas e econômicas e pronto: felicidade perpétua
para nossos semelhantes.
Infelizmente, acreditar nisso faz tanto sentido, do ponto de vista empírico, quanto achar que
o Senhor Deus realmente moldou a anatomia adâmica com argila lá pelo
ano 4.000 a.C. Nunca é demais lembrar que os mesmos ansiolíticos e
antidepressivos capazes de aliviar os males do coração humano funcionam
em roedores ou invertebrados; que líderes chimpanzés são capazes de
manobras de fazer inveja ao MDB e a Maquiavel; e que aspectos de transmissão cultural estão presentes em espécies de primatas, cetáceos e corvídeos, entre outras criaturas.
Eu poderia passar os próximos séculos citando exemplos aqui, mas a mensagem geral é clara: o excepcionalismo
não fica menos absurdo quando ganha versão laica. Ignorar a natureza
humana como o fato de que crimes violentos quase sempre são cometidos
por homens jovens, independentemente da cultura, por exemplo, como já
escrevi neste espaço --pode levar a pontos cegos trágicos quando se
tenta enfrentar problemas sociais, um objetivo louvável que não deveria
ser exclusividade de nenhuma orientação política. Somos escravos de nossa natureza biológica? Não, lógico. Mas achar que ela pode ser ignorada, em nome de Deus ou da utopia política, é uma ilusão perigosa."
Em tempo : sou ateu, todos que leem o Marreta o sabem, mas sou ateu em um sentido mais amplo, sou descrente não só de forças divinas, também o sou de qualquer ideologia ou sistema político e, sobretudo, descrente do gênero humano. Concordo com cada palavra e frase do autor do texto acima, independente de raça, credo, posição social ou ideologia política, o bicho humano se considera um ser à parte do resto do planeta, um ser que paira acima de todas as leis naturais, que pode fazer do planeta o seu supermercado, o seu bordel, a sua estância de veraneio. Excepcionalismo é um termo excelente. Nós, construtos de Deus? Bobagem. Nós, construtos sociais, de nós mesmos? Bobagem ainda maior.
2 Comentários
Excelente texto, excelentes comentários. Eu sempre pensei nessa linha (apesar de católico): fundamentalistas religiosos parecem-se com fundamentalistas ideológicos, pois creem estar na cota máxima da verdade.
ResponderExcluirE insistem em substituir os fatos pela crença.
ExcluirGostei desse autor, vou procurar mais textos dele sobre o assunto.