postagem em homenagem à minha amiga Priscilão
O Paulistânia Rock Bar foi um bar de rock e de blues que manteve suas atividades por cerca de duas décadas aqui em Ribeirão Preto. Frequentei-o, contumaz e assiduamente, entre 1998 e 2006, 2007, período que, julgo, ter compreendido o seu auge, que nada mais é, o auge, que o ponto máximo de uma trajetória balística, o vértice de uma parábola que se desenha entre o lançar da catapulta, que tira um lugar do anonimato, e o primeiro pisar das solas na areia movediça, que o tragará em retorno ao esquecimento.
O Paulistânia não era pra qualquer um. Recebia e agregava seletíssima clientela. Uma elite. Não financeira - o Paulistânia sempre praticou preços bem mais módicos que outros estabelecimentos do gênero -, tampouco intelectual - rockeiros, via de regra, pouca coisa têm na cabeça, por isso, podem ficar a chacoalhá-las e a batê-las uns contra os outros à vontade, o risco de dano é mínimo.
Sim uma elite de desequilibrados, de portadores de algum tipo de transtorno, se não mental, no mínimo, social. Se o sujeito não fosse, de alguma forma, um desajustado, jamais seria atraído a cruzar os portais do Paulistânia, ou, se inadvertidamente o fizesse, o faria uma única vez.
A clientela habitual era tudo VIP. Não de Very Important Person. Sim de Very Insane Person.
As paredes do Paulistânia delimitavam um espaço exíguo, mal distribuído, de difícil locomoção quando mais de vinte ou trinta pessoas estivessem presentes (o que era considerado um público recorde), e com um perpétuo e perenal nevoeiro de nicotina que parecia emanar do chão e das paredes, uma Little London de fog azulado. Um local próprio para se esconder, e não se exibir, como é de costume e o objetivo de quem cai na noite às sextas e aos sábados.
A loucura, dificilmente, aportava sozinha no Paulistânia - eu mesmo, que sempre fui gato vira-lata de sair e me perder sozinho pelas ruas e pela madrugada, por raríssimas vezes fui sozinho ao Paulistânia. A loucura por lá chegava em ondas, em pequenos bandos, surgia em "panelinhas" das mais diversas vertentes, cada um com seus códigos, seus trajares, seus vocabulários e seus maneirismos, os metaleiros, os progressivos, os punk rockers, os rastafáris, os bluseiros, os raulseixistas, os cabeludos, os maconheiros etc.
Embora eu nunca tenha presenciado uma única briga entre os grupos - todos conviviam e se esbarravam pacificamente pelo Paulistânia -, também nunca testemunhei nenhum congraçamento entre eles. Eles não se misturavam. A loucura sempre foi segmentada e imiscível no Paulistânia.
Assim, por anos, cruzei e cumprimentei pessoas cujos nomes jamais soube, e nem elas o meu.
E havia um grupo muito especial que frequentava o Paulistânia à época, o qual é o motivo dessa postagem e de todo esse blá-blá-blá, e que abrilhantava e que perfumava e que salpicava com doçura e delicadeza as cruéis noites ali passadas. Um grupo feminino, praticamente as únicas mulheres com cujas presenças podíamos contar.
E essa era outra peculiaridade do Paulistânia : se você fosse até lá na intenção de pegar mulher, tava fudido. E eu falo com propriedade, afinal, quando um macho das antigas sai de casa, mesmo que ele diga que não, é atrás disso que ele vai, mesmo que o mar não esteja pra peixe, ele sai é para pescar. Mas ali, as redes sempre saíam vazias da água. Nem Cristo conseguiria operar o milagre da multiplicação das buças. Aquilo parecia um colégio interno católico. Um presídio.
Mas havia esse grupo de mulheres. Todas gordinhas, gordas, GGs. Rolhas de poço. Pudins de banha. Nós as chamávamos de As Pichorras, ou, mais formalmente, de A Confraria das Pichorras.
Aqui, um parêntese se faz necessário : o termo pichorra - e eu procurei pra caralho - não consta em nenhum dicionário oficial, formal ou informal da língua portuguesa com o sentido com que o aplicávamos. Foi um significado imputado e trazido, sabe-se lá de onde, acho que nem ela mesma sabe, pela minha amiga Priscilão (não, não é um traveco).
Segundo o Dicionário Revisado da Nova Ortografia Priscilão, pichorra é um sinônimo, de cunho pejorativo, para gorda, balofa, supositório de baleia.
Acontece que, se a oportunidade faz o ladrão, a escassez e a necessidade fazem o tesão. Por não haver delícias e beldades no Paulistânia, um padrão outro para comparação, as Pichorras acabaram por ser tornar as musas do Paulistânia, as últimas bolachas do pacote, os objetos de desejo dos punheteiros do lugar.
O tiro da Priscilão saiu pela culatra. Pichorra passou a designar não apenas uma gorda, mas sim a gorda sexy, a plus size, a gorda com sex appeal, com savoir-faire, com approach, com balacobaco, com o buraco quente. A gorda que, longe de causar repulsa e paumolescência, é capaz de causar ereções matinais, vespertinas e poluções noturnas.
O que, da parte da Priscilão, surgiu como um termo depreciativo, acabou por se tornar em uma honraria, uma comenda, uma condecoração.
Igualmente aos integrantes dos outros grupos, nunca soubemos os reais nomes das Pichorras. Havia uma, a líder delas, que lembrava um pouco a atriz Neve Campbell, que fez relativo sucesso e furor na década de 1990, estrelando séries e filmes voltados ao público adolescente. Logo, a pichorra passou a ser a Neve Campbell. Tempos depois, ela tingiu os cabelos de preto retinto e passou a cortá-los ao estilo da Cleópatra da Elisabeth Taylor : virou Cleópatra para nós. Outra delas, dados a compleição e os atributos físicos, foi batizada de Bola 7 pelo meu amigo Samuel, o famoso Nariz. Só que nunca sabíamos se a Bola 7 era mesmo a Bola 7, pois a mesma tinha umas 18 irmãs quase que idênticas, como que saídas de uma linha de produção fordista. E a coisa e as nomenclaturas extraoficiais iam por ai, por esse viés.
Então, um salto de 10 anos no tempo e eu me pego acordado às sete da manhã de um sábado na sacada do apartamento - cabelos bem mais brancos, rugas mais profundas, mais barrigudo -, tomando um café forte, olhando a rua, esperando mulher e filho acordarem (as gatas já foram alimentadas e já roçam e se enrodilham em meus pés), me preparando psicologicamente para um fim de semana na casa da sogra.
Eis que de repente, não mais que de repente, um caminhão sobe e estaciona do outro lado da rua, poucos metros acima, em frente a uma empresa de manutenção de computadores e periféricos. Na lateral do enorme baú, o nome da transportadora, em foto tirada da sacada, meio que de lado, da porra de um tablet CCE que recebi do Governo.
TransPichorra! Pãããããta que o pariu!!!
O Paulistânia não era pra qualquer um. Recebia e agregava seletíssima clientela. Uma elite. Não financeira - o Paulistânia sempre praticou preços bem mais módicos que outros estabelecimentos do gênero -, tampouco intelectual - rockeiros, via de regra, pouca coisa têm na cabeça, por isso, podem ficar a chacoalhá-las e a batê-las uns contra os outros à vontade, o risco de dano é mínimo.
Sim uma elite de desequilibrados, de portadores de algum tipo de transtorno, se não mental, no mínimo, social. Se o sujeito não fosse, de alguma forma, um desajustado, jamais seria atraído a cruzar os portais do Paulistânia, ou, se inadvertidamente o fizesse, o faria uma única vez.
A clientela habitual era tudo VIP. Não de Very Important Person. Sim de Very Insane Person.
As paredes do Paulistânia delimitavam um espaço exíguo, mal distribuído, de difícil locomoção quando mais de vinte ou trinta pessoas estivessem presentes (o que era considerado um público recorde), e com um perpétuo e perenal nevoeiro de nicotina que parecia emanar do chão e das paredes, uma Little London de fog azulado. Um local próprio para se esconder, e não se exibir, como é de costume e o objetivo de quem cai na noite às sextas e aos sábados.
A loucura, dificilmente, aportava sozinha no Paulistânia - eu mesmo, que sempre fui gato vira-lata de sair e me perder sozinho pelas ruas e pela madrugada, por raríssimas vezes fui sozinho ao Paulistânia. A loucura por lá chegava em ondas, em pequenos bandos, surgia em "panelinhas" das mais diversas vertentes, cada um com seus códigos, seus trajares, seus vocabulários e seus maneirismos, os metaleiros, os progressivos, os punk rockers, os rastafáris, os bluseiros, os raulseixistas, os cabeludos, os maconheiros etc.
Embora eu nunca tenha presenciado uma única briga entre os grupos - todos conviviam e se esbarravam pacificamente pelo Paulistânia -, também nunca testemunhei nenhum congraçamento entre eles. Eles não se misturavam. A loucura sempre foi segmentada e imiscível no Paulistânia.
Assim, por anos, cruzei e cumprimentei pessoas cujos nomes jamais soube, e nem elas o meu.
E havia um grupo muito especial que frequentava o Paulistânia à época, o qual é o motivo dessa postagem e de todo esse blá-blá-blá, e que abrilhantava e que perfumava e que salpicava com doçura e delicadeza as cruéis noites ali passadas. Um grupo feminino, praticamente as únicas mulheres com cujas presenças podíamos contar.
E essa era outra peculiaridade do Paulistânia : se você fosse até lá na intenção de pegar mulher, tava fudido. E eu falo com propriedade, afinal, quando um macho das antigas sai de casa, mesmo que ele diga que não, é atrás disso que ele vai, mesmo que o mar não esteja pra peixe, ele sai é para pescar. Mas ali, as redes sempre saíam vazias da água. Nem Cristo conseguiria operar o milagre da multiplicação das buças. Aquilo parecia um colégio interno católico. Um presídio.
Mas havia esse grupo de mulheres. Todas gordinhas, gordas, GGs. Rolhas de poço. Pudins de banha. Nós as chamávamos de As Pichorras, ou, mais formalmente, de A Confraria das Pichorras.
Aqui, um parêntese se faz necessário : o termo pichorra - e eu procurei pra caralho - não consta em nenhum dicionário oficial, formal ou informal da língua portuguesa com o sentido com que o aplicávamos. Foi um significado imputado e trazido, sabe-se lá de onde, acho que nem ela mesma sabe, pela minha amiga Priscilão (não, não é um traveco).
Segundo o Dicionário Revisado da Nova Ortografia Priscilão, pichorra é um sinônimo, de cunho pejorativo, para gorda, balofa, supositório de baleia.
Acontece que, se a oportunidade faz o ladrão, a escassez e a necessidade fazem o tesão. Por não haver delícias e beldades no Paulistânia, um padrão outro para comparação, as Pichorras acabaram por ser tornar as musas do Paulistânia, as últimas bolachas do pacote, os objetos de desejo dos punheteiros do lugar.
O tiro da Priscilão saiu pela culatra. Pichorra passou a designar não apenas uma gorda, mas sim a gorda sexy, a plus size, a gorda com sex appeal, com savoir-faire, com approach, com balacobaco, com o buraco quente. A gorda que, longe de causar repulsa e paumolescência, é capaz de causar ereções matinais, vespertinas e poluções noturnas.
O que, da parte da Priscilão, surgiu como um termo depreciativo, acabou por se tornar em uma honraria, uma comenda, uma condecoração.
Igualmente aos integrantes dos outros grupos, nunca soubemos os reais nomes das Pichorras. Havia uma, a líder delas, que lembrava um pouco a atriz Neve Campbell, que fez relativo sucesso e furor na década de 1990, estrelando séries e filmes voltados ao público adolescente. Logo, a pichorra passou a ser a Neve Campbell. Tempos depois, ela tingiu os cabelos de preto retinto e passou a cortá-los ao estilo da Cleópatra da Elisabeth Taylor : virou Cleópatra para nós. Outra delas, dados a compleição e os atributos físicos, foi batizada de Bola 7 pelo meu amigo Samuel, o famoso Nariz. Só que nunca sabíamos se a Bola 7 era mesmo a Bola 7, pois a mesma tinha umas 18 irmãs quase que idênticas, como que saídas de uma linha de produção fordista. E a coisa e as nomenclaturas extraoficiais iam por ai, por esse viés.
Então, um salto de 10 anos no tempo e eu me pego acordado às sete da manhã de um sábado na sacada do apartamento - cabelos bem mais brancos, rugas mais profundas, mais barrigudo -, tomando um café forte, olhando a rua, esperando mulher e filho acordarem (as gatas já foram alimentadas e já roçam e se enrodilham em meus pés), me preparando psicologicamente para um fim de semana na casa da sogra.
Eis que de repente, não mais que de repente, um caminhão sobe e estaciona do outro lado da rua, poucos metros acima, em frente a uma empresa de manutenção de computadores e periféricos. Na lateral do enorme baú, o nome da transportadora, em foto tirada da sacada, meio que de lado, da porra de um tablet CCE que recebi do Governo.
Abriu-se o Túnel do Tempo! Foi ligado o tomógrafo da memória!
No mesmo instante, comecei a imaginar as pichorras saindo alegres e dançantes e requebrantes e sensuais e luxuriantes do caminhão, quando o motorista destrancasse as portas traseiras. A líder dela em suas duas versões a coexistir, a Neve Campbell de mãos dadas e colando velcro com a Cleópatra, a Bola 7 e suas 18 irmãs. Quem sabe até o Durval, o dono do Paulistânia e o último verdadeiro homem do rock em Ribeirão Preto, a servir, mal-humorado, a sempre morna cerveja. Liberei geral e imaginei mesmo ver o Grillo Vergueiro - o maior cover do Raul Seixas do Brasil, infelizmente aposentado por motivos infelizes - descendo do caminhão com sua guitarra e sua garrafa de conhaque em punho e a tocar e cantar DDI, Amigo Pedro, A Hora do Trem Passar, Medo da Chuva, Conserve seu Medo, SOS, Sessão das Dez e, ao encerramento da noite, na hora do bis e dos pedidos, declamar Movido a Álcool e se derreter a uma bem fornida fã e entoar Baby.
Imaginei um reencontro, uma festa e uma serenata sob minha sacada.
Qual o quê... O caminhão transportava somente uma carga de toner para impressoras.
Dei as costas para a rua e fui me reabastecer de café.
Seria só mais um sábado comum. Movido a café. Sem Baby.
Só mais um sábado sem rock'n'roll.
8 Comentários
Puta que o pariu.
ResponderExcluirEu havia apagado minha declaração em uma postagem anterior, me arrependido do dito/escrito, "não é pra tanto,afinal"... Mas, realmente, não há outra forma de me expressar aqui. VOCÊ É FODA!
Me revi, revivi, até cheguei a escutar e ver a expressão singular do Grilo cantando "Baby" ao fim da noite.
E não íamos embora enquanto não chegasse o fim.
Uma pena que ele chegou.
E ele sempre não chega?
ExcluirPelo que sei você pegou muito essa Priscila
ResponderExcluirÉ como escreveu: "a escassez e a necessidade fazem o tesão"
Aprendeu direitinho com o primo mais velho
pelo que você sabe? e quem é você, seu porra?
ExcluirPrimo mais velho? Eu não tenho primos mais velhos. Eu sou o mais velho. E o mais bonito, tb. E o mais roludo!!!
Rapaz, tirando a ausência de mulheres gatas (eu sempre estava à procura de uma), esse Paulistânia era minha cara! Talvez pela falta de grana, esse era exatamente o tipo de lugar que me atraia - com rock e gente esquisita. Em BH usava-se (pouco) a expressão "lavou a pichorra", como sinônimo de "lavou a égua", ou "se deu bem". Muito legal o texto.
ResponderExcluirrealmente, o significado de pichorra é esse, a fêmea do cavalo, a égua.
ExcluirMas infelizmente eu nunca lavei nenhuma das tais pichorras, sempre fui péssimo, uma lástima em chegar na mulherada.
Porque esse bar fechou?
ResponderExcluirbasicamente, o tempo, meu caro. a clientela foi mudando, foi chegando essa nova geração de afrescalhados politicamente corretos, o dono foi ficando (mais) velho e mais sem paciência, foi enchendo o saco etc etc etc.
Excluirtriste, de qualquer forma.